Regresso
O elefante gostou do que viu e
fê-lo saber à companhia, embora em nenhum ponto o itinerário que escolhemos
tivesse coincidido com aquele que a sua memória de elefante zelosamente
guardava. Que haviam, disse, ele e os soldados de cavalaria, subido para o
norte quase a pisar a linha da fronteira, por isso eram os caminhos tão ruins.
Comparada com a viagem de então, esta foi um passeio: boas estradas, bons
alojamentos, bons restaurantes, o próprio arquiduque, ainda que
habituado aos luxos da Europa central, teria ficado surpreendido. A expedição
foi para trabalhar, mas disfrutou como se andasse de férias. Até os sofridos
câmaras, obrigados a carregar com equipamentos de sete quilos ao ombro, estavam
encantados. O interessante é que nem os nossos amigos, nem os jornalistas
conheciam os lugares que visitámos. Melhor para eles, que dali levaram muito
que contar e recordar. Começámos por Constância, onde se crê
que Camões viveu e teve
casa, de cujas janelas terá visto mil vezes o abraço do Zêzere e do Tejo, aquele suave remanso da
água na água capaz de inspirar os versos mais belos. Dali fomos para Castelo Novo para ver a Casa da Câmara, do tempo de D. Dinis, e o chafariz
joanino que lhe está pacificamente encostado. Vimos também a lagariça,
essa espécie de dorna ao ar
livre para a pisa das uvas,
cavada na rocha bruta em tempos que se acredita serem os da pré-história.
Dormimos no Fundão,
terra de cerejas por excelência, e na manhã seguinte ala para Belmonte onde
nasceu Pedro
Álvares Cabral, direitos à igreja
de S. Tiago, da minha particular devoção. Ali está uma das mais comovedoras
esculturas românicas que existem na face da terra, uma pietà de granito
toscamente pintado, com um Cristo exangue deitado sobre os joelhos da sua mãe.
Ao pé desta estátua, a célebre pietà de Miguel Ângelo que se
encontra no Vaticano não
passa de um suspiro maneirista. Não foi fácil arrancar o pessoal à extática
contemplação em que havia caído, mas lá os conseguimos levar aliciando-os com o
enigma arquitectónico de Centum
Cellas, essa construção inacabada cuja problemática finalidade foi e
continua e ser objecto das mais acaloradas discussões. Seria uma torre de
vigia? Uma hospedaria para viajantes de passagem? Uma prisão, embora o neguem
as rasgadas janelas que subsistem? Não se sabe. Saciada a fome de imagens, o
destino seguinte seria Sortelha,
a das muralhas ciclópicas.
Ali nos caiu em cima uma trovoada como poucas, relâmpagos em rajada, trovões a
condizer, chuva a cântaros e granizo que era como metralha. Não chegámos a
beber o café, a corrente eléctrica sumira-se. Uma hora foi o que demorou o céu
a escampar. Ainda chovia quando entrámos no autocarro, a caminho de Cidadelhe, sobre
o qual não escreverei. Remeto o leitor interessado e de boa vontade para as
quatro ou cinco páginas que lhe dediquei na Viagem a Portugal. Os companheiros arregalaram os
olhos perante o pálio de 1707, depois foram ver aldeia, os relevos nas portas
das casas, os caixotões da igreja matriz com retratos de santos. Vinham
transfigurados e felizes. Agora só faltava Castelo Rodrigo. O
presidente da câmara municipal de Figueira de
Castelo Rodrigo esperava-nos na ponte sobre o Côa, a pouca distância de
Cidadelhe. De Castelo Rodrigo eu conservava a imagem de há trinta anos, quando
lá fui pela primeira vez, uma vila velha decadente, em que as ruínas já eram só
uma ruína de ruínas, como se tudo aquilo estivesse a desfazer-se em pó. Hoje
vivem 140 pessoas em Castelo Rodrigo, as ruas estão limpas e transitáveis,
foram recuperadas as fachadas e os interiores, e, sobretudo, desapareceu a
tristeza de um fim que parecia anunciado. Há que contar com as aldeias históricas,
elas estão vivas. Eis a lição desta viagem.
José Saramago, O CADERNO
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