Corpo de Deus
Também lhe
chamam Corpus Christi
e é «dia de preceito» para os católicos,
além de feriado oficial. Todos os fiéis deverão ir à missa (ser «dia de
preceito» a tal obriga) para dar testemunho da presença real e substancial de Cristo na hóstia. E nada de pôr-se
com dúvidas sobre a divina presença na pastilha ázima como sucedeu a um
sacerdote chamado Pedro de Praga, no século XIII, não seja que se repita o
tremebundo milagre de ver a hóstia transformar-se em carne e sangue, não
simbólicos, mas autênticos, e ter de levar outra vez a sanguinolenta prova em
solene procissão para a catedral de Oviedo,
como complacentemente no-lo explica Wikipedia, fonte a que neste
difícil transe tive de recorrer. O mundo era interessantíssimo naquele tempo.
Hoje, o milagre de recuperar a economia e a banca passa por imprimir milhões de
dólares a uma velocidade de vertigem e pô-los a circular, preenchendo assim um
vazio com outro vazio, ou, por palavras menos arriscadas, substituindo a
ausência de valor por um valor meramente suposto que só durará o que durar o
consenso que o admitiu.
Mas não era
da crise que eu queria escrever. Em todo o caso, como já se vai ver, a menção
ao Corpo de Deus
não foi gratuita nem simples pretexto para fáceis heresias, como costumam ser
as minhas, segundo canónicas e abalizadas opiniões. Há alguns dias, no 28 de
Maio para ser mais exacto, um boliviano de 33 anos, de nome Fraans Rilles, emigrante
«sem papéis» e sem contrato, que trabalhava numa padaria em Gandia (Espanha), foi vítima de
grave acidente, uma máquina de amassar cortou-lhe o braço esquerdo. É certo que
os patrões tiveram a caridade de o levar ao hospital, mas deixaram-no a 200
metros da porta com uma recomendação: «Se te perguntam, não digas nada da empresa».
Como seria de esperar, os médicos pediram o braço para tentar reimplantá-lo,
mas tiveram de desistir da ideia perante o mau estado em que se encontrava.
Tinham-no atirado ao lixo.
Afinal, eu
não queria escrever sobre o Corpo de Deus. Como é meu costume, uma coisa levou
a outra, mas era do Corpo do Homem que eu pretendia realmente falar, esse corpo
que, desde a primeira manhã dos tempos, vem sendo maltratado, torturado, despedaçado,
humilhado e ofendido na sua mais elementar dignidade física, um corpo a quem
agora foi arrancado um braço e a quem foi ordenado que se calasse para não prejudicar
a empresa. Espero que os fiéis que hoje acorreram à missa e leram a notícia no
jornal tenham tido um pensamento para a carne sofredora e o sangue derramado
deste homem. Não peço que o ponham num altar. Só peço que pensem nele e em
tantos como ele. Diz-se que todos somos filhos de Deus. Não é verdade, mas com esta
falsidade se consolam muitos. Deus não valeu a Fraans Rilles, vítima da máquina
de amassar pão e da crueldade da gente sem escrúpulos que explorava a sua força
de trabalho. Assim vai o mundo e não haverá outro.
José Saramago, O CADERNO
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