domingo, 26 de fevereiro de 2012

Dia 26 [Fevereiro de 2009]

Cão-d’água
Quando Camões apareceu por aqui, vai fazer catorze anos, com a sua pelagem negra e a exclusiva gravata branca que o tem distinguido de qualquer outro exemplar da espécie canina, todos os humanos da casa se pronunciaram sobre a suposta raça do recém-chegado: um caniche. Fui o único a dizer que caniche não seria, mas cão-d’água português. Não sendo eu especialmente entendido em cães, não seria nada surpreendente que estivesse equivocado, mas enquanto os demais teimavam em declará-lo caniche, eu mantinha-me firme na minha convicção. Com a passagem do tempo, a questão perdeu interesse: caniche ou cão-d’água, o companheiro de Pepe e Greta (que já se foram ao paraíso dos cães) era simplesmente o Camões. Os cães vivem pouco para o amor que lhes ganhamos e Camões, final depositário do amor que dedicávamos aos três, já leva catorze anos vividos, como ficou dito acima, e os achaques próprios da idade começam a ameaçá-lo. Nada de grave por enquanto, mas ontem apanhámos um susto: Camões tinha febre, estava murcho, metia-se pelos cantos, de vez em quanto soltava um ganido agudo e, coisa estranha, ele, que tão falto de forças parecia, desceu ao jardim e pôs-se a escavar a terra, fazendo uma cova que a imaginação de Pilar logo percebeu como a mais funesta das previsões. Felizmente, o mau tempo passou, pelo menos por agora. A veterinária não lhe encontrou nada de sério, e Camões, como para nos tranquilizar, recuperou a agilidade, o apetite e a tranquilidade de humor que o caracteriza, e anda por aí feito uma flor com a sua amiga Boli, que passa uns tempos em casa.
Por coincidência, foi hoje notícia que o cão prometido por Obama às filhas será precisamente um cão-d’água português. Trata-se, sem dúvida, de um importante trunfo diplomático de que Portugal deverá tirar o máximo partido para bem das relações bilaterais com os Estados Unidos, subitamente facilitadas graças à presença de um nosso representante directo, diria mesmo um embaixador, na Casa Branca. Novos tempos se avizinham. Tenho a certeza de que se Pilar e eu formos aos Estados Unidos, a polícia das fronteiras já não sequestrará os nossos computadores para lhes copiar os discos duros.
José Saramago, O CADERNO

Sem comentários:

Enviar um comentário