terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

EXCURSÃO AO GERÊS

Após o assalto falhado ao fortim gereseano de S. João da Fraga, pedi ao José Lestra que me levasse à Barragem do Toco.
– É para já – respondeu ele com o entusiasmo e a generosidade que todos lhe reconhecem.
Subimos para o Jeep e, após dois dedos de conversa, tínhamos à frente dos olhos a serena e árida beleza da albufeira de Paradela.
– Deixa-me perguntar se a cancela estará fechada – disse.
E dirigiu-se a uma senhora que regava as flores domésticas dum quintalório:
– Bom dia! Sabe dizer-me se a cancela de acesso ao Toco estará fechada?
– Costuma estar aberta. Mas, por vezes, fecham-na. E hoje anda por aí o Engenheiro. Ponham-se a pau com ele.
Afinal a cancela estava aberta.
– Será melhor deixarmos um cartão – sugeri.
– Dizes bem.
E o Zé, sacando da pena, escreveu: «Estamos para o Toco. No caso de fecharem a cancela, pedimos o favor de nos avisar.»
E deixou o número do telemóvel, modernice que eu abomino, mas que, em ocasiões destas, se revela de alguma utilidade.
– Assim vamos mais descansados – disse.
E continuámos, a passo e de credo na boca, devido ao mau piso do estradão minado de lacadas. E em breve tínhamos pela frente a serena beleza do rio Cabril. É uma visão irreal, só compatível com as alucinações de Maomé a sonhar com o paraíso. A torrente, duma limpidez de cristal, vem descendo das alturas por um escadório de piscinas naturais escavadas no granito cor-de-rosa polido pela água de milénios. Incomparável!
– Sabes do que me estou a lembrar? – disse eu – Se a serra fosse uma deusa, estas Lagoas do Cabril seriam o seu colar de safiras.
– Estás muito poético.
– O que estou é boquiaberto perante esta maravilha. Esta visão duma beleza primitiva. Dessa beleza que todo o nosso planeta devia ter antes da chegada do bicho-homem, que tudo conspurca. Acho bem que fechem a cancela e ponham lá um letreiro desses que se encontram à porta dos restaurantes: «Reservado o direito de admissão...
– A quem apresentar atestado de bom comportamento moral e cívico.
– E se descêssemos e tomássemos um banho? Estou em crer que um mergulho nestas águas nos faria bem ao corpo e à alma.
– Na volta, lá para o fim da tarde. Por agora, proponho o seguinte: vamos ao Toco, e, no regresso, fazemos uma pausa para almoço e sesta na Lagoa. Que te parece?
– Eis aqui o teu escravo. Cumpra-se em mim a tua vontade.
– Anuncio-te que vamos partir.
– A caminho dos píncaros.
– Que é o que mais há por aí.
Realmente, à medida que íamos subindo, os morros acastelados sucediam-se uns aos outros a um ritmo duma valsa de Johann Strauss. Pelo espelho retrovisor, eu via a fita branca do estradão já percorrido e comparava-o ao trajecto da minha vida. Também ela tem pontos claros e escuros, rectas e torcicolos, curvas e contracurvas, altos e baixos. Um láparo atravessou a picada, à nossa frente.
– Olha! Olha! – exclamámos ambos a um tempo. Hoje em dia, ver um coelho bravo, não é para todos.
Bom conhecedor da serra, o meu companheiro ia-me elucidando:
– Acolá, por detrás daquela ravina, ficam as Minas dos Carris. Ali é o Borrajeiro. Do outro lado, a Pedra-Boi. Agora vou-te mostrar um penedo em forma de seio. Lá está ele. Que te parece?
– Longe vai o tempo em que qualquer outeiro ou penedo mais redondo me lembrava um seio de mulher. Infelizmente, a minha puberdade vai longe e, com ela, as minhas fantasias eróticas. Hoje, tudo me lembra o rosário e a velha da foice.
– Memento, homo.
– Adivinhaste.
– Agora adivinha tu. Porque é que tem aquela cor esbranquiçada no topo?
– Quem?
– O penhasco em forma de seio?
– Se é um seio, é do leite.
– Enganas-te. É do mijo das cabras.
– Não vejo cabra nenhuma.
– Mas, antigamente, eram aos milhares, empoleiradas por esses picos. E como a urina é ácida, imprime esse tom esbranquiçado à pedra.
– Já ouvi falar nisso. As cabras ficavam aí de noite e empoleiravam-se nas rochas inacessíveis aos lobos. Creio que lhe chamavam póios.
– Aos lobos?
– Às rochas onde as cabras dormiam.
– Admira estas vistas – disse o meu companheiro, parando o Jeep.
Descemos. Avista-se dali meio mundo. As serras, os rios, as aldeias, as albufeiras, as estradas, os bosques, os lameiros, as searas, as ermidas, movimentam-se na claridade dos primeiros cem quilómetros e na bruma dos restantes numa sucessão de imagens de caleidoscópio.
– Foi pena não termos trazido um binóculo – disse eu – Com uma boa lente, tenho a certeza de que se avista daqui o Atlântico e a serra da Estrela.
– Isso também seria ver demais. Contenta-te com o que te dão.
– Que não é ele tão pouco.
E fechei aquela visão inesquecível na retina para recordar em noites de insónia.
– Podemos seguir.
Agora a descer, caminho do Toco. O meu cicerone ia recordando:
– Ao longo deste córrego havia uma touça de carvalhos gigantes, alguns com mais de vinte metros de fuste. Coisa bonita. Desapareceram.
– Que lhes fizeram?
– Roubaram-nos.
– Para o lume.
– Para madeira.
Um bando de perdizes atravessou à nossa frente.
– Estamos com sorte.
– Porquê?
– Sobrevoaram-nos da esquerda para a direita. Em sentido contrário dava azar.
– Repara naqueles gravetos, ao cimo do vale. É o que resta duma grande mata de teixos, árvore em vias de extinção.
– Também os roubaram?
– Chegaram-lhes fogo.
– Terra de bárbaros.
– E de víboras.
– Víboras?!
– Em tal quantidade que, aquando da construção da barragem, a empresa exigia aos trabalhadores o uso de grevas.
– Já não saio do carro.
– Não sejas timorato. Aqui há uns anos, eu e o mano batemos todas essas chapadas e não encontrámos nenhuma.
– Aventureiros.
– Inocentes. Aliás, segundo os entendidos, a víbora só ataca se se vir encurralada. Se lhe deixarem caminho livre, afasta-se.
– Nesse caso.
A Barragem do Toco é pouca mais que uma represa de moinho. A grande obra de engenharia deve ser o túnel que, ao longo de muitos quilómetros e das entranhas da serra, traz a água para a albufeira de Paradela. Mas esse não se vê.
– Está visto – disse eu, mortinho por abandonar aquela terra de víboras – e dirigi-me para o carro.
Reparei num arbusto carregado de bagas vermelhas, duma beleza exótica e para mim desconhecida.
– Sabes que arbusto é este?
– Não.
– Bonito.
Regressámos. Vimos mais perdizes. Às tantas o Zé saiu do estradão e meteu o Jeep a corta mato, por um poisio dentro.
– Para onde vamos?
– À Lagoa.
Eu olhava e não via lagoa nenhuma.
– Onde está ela?
– É isto – e indicou-me uma circunferência de terra nua com uns cinquenta metros de diâmetro, onde largas dezenas de vacas, umas de pé outras deitadas, ruminavam e sacudiam a mosca. – Nesta altura do ano e com a estiagem que vai, secou. Mas no Inverno enche. Chega a ter mais de um metro de altura de água. Se reparares bem, a terra ainda está húmida. Por isso é que as vacas a preferem. Gostam de sentir a frescura no ventre. Anda cá que te quero mostrar uma coisa.
E levou-me até junto duma fonte de jorro abundante.
– Queres provar?
– Homem, assim de estômago vazio...
– É só para veres como é fresca.
Era realmente deliciosa.
– Já reparaste nas cabanas dos pastores?
– Estou a ver.
Uma antiga, género caverna de urso, outra mais sofisticada, obra do Parque da Peneda-Gerês. Indiquei a primeira e disse:
– Não era eu que entrava aí!
– Porquê?
– Por causa das víboras.
– Deixa lá as víboras e anda.
– Para onde?
– Junto daquelas árvores. Há lá água e sombra.
– É longe?
– Uns mil e quinhentos metros.
– Devem ser mais.
– Uns dois quilómetros, no máximo.
– Mais que fossem. Avante, compañero de mi vida.
Distribuímos a caravela e pusemo-nos em marcha. Eu via o Zé à minha frente, liteiro pelas costas, lancheira ao ombro, enfiada no rijo bengalão de carvalho cerquinho, passo estugado de contrabandista. De vez em quando voltava-se e dizia:
– Segue as mariolas. As maiores, indicam as auto-estradas; as mais pequenas, as vias secundárias.
Eu via apenas uns carreiritos manhosos, por onde era difícil progredir. Ora punha o pé em falso, ora tropeçava nas raízes. Cheguei a ir de cu nos tojos. Disse mal da minha vida. Da minha vida e das moscas, que largaram as vacas e caíram em mim. Caí nelas à bordoada.
– Ah, suas atrevidas! Lá por ir carregado, não sou nenhum burro.
As excomungadas, porém, não me largavam. Praguejei:
– Porque é que nesta imensidão de luz, silêncio e pedra há-de haver moscas? Nada há perfeito neste mundo.
Sem embargo, de quantas já vi, a do Gerês continua a ser a serra que maior sensação de grandeza me transmite. Vistas do Gerês, o Larouco e a Cabreira parecem serras secundárias. Parei de novo, em êxtase perante a divindade.
– Para aqui – gritou-me o Zé para além dum espesso matagal.
Vi-me e desejei-me para lá chegar.
– Porque não esperaste por mim?
– Oh, rapaz, já não aguentava o peso da bengala no ombro.
Havia ali um carvalho solitário, lanços de água estagnada, uns metros de torrão seco.
O Zé estendeu o liteiro na relva, abriu a lancheira. À vista das loiras coxas dum frango caseiro assado, esqueci as belezas da serra.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 23 e ss.)

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