sexta-feira, 3 de junho de 2011

OS ESQUILOS

Estão a caluniar os esquilos. Que matam galinhas... Tolice. Que eu saiba, os esquilos são roedores. Habituado a ver em postais, filmes e desenhos animados esses simpáticos bichos a carrear bolotas e nozes para as tocas das árvores, custa-me a crer que matem galinhas. Os predadores das galinhas são doutra espécie: aves de rapina, raposas, fuinhas, toirões, ginetas, mulheres paridas e... rapazes.
De raposas conheço um dúzia de histórias. De rapazes, dúzia e meia. Vou contar duas para amostra.
A primeira passada em Montalegre com um saudoso amigo meu chamado Fernando, por antonomásia O Latas.
O Latas era amigo do seu amigo e... da borga. Ora borga que não meta uma taina, nem é borga nem é nada. E, para improvisar uma taina, nada melhor e mais fácil do que um assalto à capoeira dum vizinho.
Um dia por outro, O Latas escolhia a capoeira do João Baptista, secretário da Câmara e homem muito devoto, honra lhe seja. E até, à conta disso, lhe aconteceu uma dos diabos.
Estava ele a aperaltar-se para a missa dominical e, como não encontrasse o pente, deitou mão duma travessa cravejada de vidrilhos coloridos, pertencente a uma das irmãs. Nisto ouve tocar o sino e sai porta fora disparado, direito à igreja. Tão disparado, que se esqueceu da travessa empoleirada na poupa.
Neste preparo se apresenta à mesa da sagrada comunhão, a que nunca faltava. O senhor Arcipreste, o velho, que não era de chalaças, vê aquilo e começa a verberar a vaidade e maneirismo de alguns homens que se não coíbem de aparecer na igreja enfeitados com atavios impróprios do sexo a que pertencem e do respeito devido à casa de Deus. E todos a rir à socapa e a olhar para o João Baptista. E o João Baptista na mais tranquila das inocências. Até que alguém lhe aponta para a melena, ele vai com a mão e encontra a travessa. O que ele não encontrou foi um buraco onde se meter.
O João Baptista morava ali à entrada da Rua da Portela, numa casa tipicamente barrosã. Porta de cancelo, lareira a um canto e moreia da lenha a outro. E em cima da lenha, as galinhas.
Como disse, o João Baptista era muito devoto. E uma das suas devoções mais queridas era o tercinho em família, à noite, ao redor dos potes.
O Latas aproveitava a reza para lhe pescar as galinhas.
Que ninguém fique a pensar que o fazia com um anzol. Nada disso. Fazia-o com uma vara. Um método simples. Como a casa não tinha janela nem chaminé, a porta estava normalmente aberta para dar vazão ao fumo. O Latas estendia a vara por cima da cancela e começava a fazer cócegas nos pés às galinhas. Estas levantavam primeiro uma pata, depois a outra. Ao poisá-las de novo, já estavam em cima da vara. Era só puxá-las e torcer-lhes o pescoço...
Por vezes os galináceos desequilibravam-se e emitiam uns cacarejos esquisitos. O João Baptista que ia lá na vigésima «Avé Maria, cheia de graça», cortava a oração: «Ele as galinhas que têm?» O Latas imobilizava a vara. As galinhas calavam-se. O João Baptista continuava: «o Senhor é convosco, bendita sejais vós...»
A folhas tantas as irmãs do João Baptista deram pelo desfalque na capoeira e comentaram o caso com as vizinhas. Estas queixavam-se do mesmo. E uma delas, a quem nada escapava, identificou os ratoneiros.
Posto ao corrente, o João Baptista pediu à guarda que chamasse os malandrins ao quartel e lhes desse um correctivo. Os rapazes foram chamados à guarda. Diz-lhes o sargento:
Já que gostais tanto de copos, preparei-vos aqui uma pinga de trás da orelha.
Que era um litro de água morna com meio quilo de sal.
O primeiro a beber, desfez-se em caretas. O segundo em vómitos. O terceiro e o quarto, numa coisa e noutra. Chega a vez do Latas. Para demonstrar aos subordinados como é que um homem se deve comportar perante a tirania, leva o caneco aos queixos e emborca-o dum trago.
Diz-lhe o sargento:
Ai gostaste? Vais beber outro...
Morreu cedo, o meu amigo Fernando, por apelido O Latas. «Aqueles a quem os deuses amam, morrem jovens», diziam os latinos. Por isso eu cheguei a velho.
A outra história passou-se numa república de Coimbra. Periodicamente, os repúblicos forneciam-se na capoeira dum futrica vizinho. Um desses galinheiros que lembram confessionários, com uma porta numa das ilhargas, sempre fechada, e um buraco na outra, para entrada e saída das pitas. A coisa era fácil. Bastava meter a mão pelo buraco e catrafilar franga, frango ou galarás. Até que o futrica se encheu daquilo e resolveu dar aos estudantes uma lição de catedrático, que é como quem diz, de cacete.
Uma noite entram no quintal do futrica dois repúblicos, um de mãos a abanar, o outro com um saco. O primeiro mete a mão, apanha uma cacetada no braço, estarrinca os dentes, mas aguenta firme:
Não lhes chego segreda ao companheiro. Experimenta tu que tens o braço mais comprido.
O outro mete o braço: tau!
Ah!!!, filho da...
Não se percebendo bem se o piropo era para o dono da capoeira, se para o colega.
O mais provável é que os englobasse a ambos.
Recapitulando; aves de rapina, raposas, fuinhas, toirões, ginetas, mulheres paridas, rapazes. Agora esquilos? Tolices... Que lhe andam aos tiros... Reprovo. O homem, lá por ser o rei da criação, não é dono exclusivo deste planeta. Tem de respeitar os demais seres viventes. Aprender a coabitar com eles na paz do Criador.
Já imaginaram o que seria a nossa terra sem aves no céu, sem peixes nos rios, sem animais bravos pelos montes?
Toca a respeitar os esquilos. Entendido?
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 99 e ss.)

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