quarta-feira, 15 de junho de 2011

OS CARROS DE BOIS

Tempos houve em que eu, por inexperiência, embirrava com a cantoria dos carros de bois. Achava aquilo uma coisa bárbara.
Agora que, nos caminhos da minha infância, os velhos carros celtas foram substituídos por máquinas industriais, tenho saudades.
Afinal, o cantar dum carro era muito mais melódico e agradável ao ouvido que o barulho dos motores e o batuque dos atrelados.
Ao som dum carro, até um homem dormia melhor.
Quando um tractor passa na rua, a casa estremece e um homem acorda sobressaltado.
É o progresso, dizem eles, todos conchas.
É a morte do bucolismo, daquela inocência campestre de que nos fala Vergílio: O fortunatos nimium, sua si bona norint, agricolas, digo eu.1
Havia uma relação mais íntima entre o velho lavrador e a junta de vacas que lhe puxava o carro ou o arado, do que entre o moderno tractorista e a máquina que não conhece o dono.
Um tractor, vazio ou carregado, é sempre uma coisa pesada, barulhenta, mastodôntica.
Um carro de bois é uma obra de arte.
Hoje, quando o dono dum tractor quer dar nas vistas, acelera. Resultado? Quanto maior a velocidade, maior o cagaçal.
Outrora, quando o dono dum carro de bois queria dar nas vistas, fazia uma boa carrada e apertava as treitoiras. Resultado? Uma orquestração que obrigava o mundo a parar e ouvir.
Nada fácil construir um carro cantador.
Um carro sanfona, qualquer chabouqueiro o fazia. Um carro violino, só os estradivários do ofício o conseguiam.
Estes, não descuravam o mínimo pormenor. A principiar pela madeira.
Nem toda serve. Cada árvore, para o que nasce e onde. Por exemplo: em Peireses, as árvores nascidas e criadas a nascente, são muito mais leves, vibráteis e obedientes ao corte, do que as nascidas e criadas do lado oposto. Portanto, quem quiser madeira para um carro cantante, vai buscá-la a leste da povoação.
Depois, é preciso conhecer quais as árvores mais indicadas. Há um ditado que nos ensina:
«Eixo de vidoeiro,
Chumaços de salgueiro
E treitoiras de giesta,
Todo o caminho é uma festa».
O ditado não fala nas rodas. Se falasse, diria:
«Rodas de carvalho verinho».
Tudo muito bem seco. Entre cinco a dez anos a secar. Só então a madeira estará em condições de ser trabalhada.
Não entro em particularidades de fábrica. Digo apenas que esta depende das aspirações do artista. Se pretende apenas um carro maria vai com as outras, limita-se a encaixar o eixo nas rodas, a pôr-lhe o chedeiro em cima e uma junta de vacas à frente. Se aspira a um carro bom tenor, recorre a outros requisitos.
Um deles consiste em abrir-lhe caixas de ressonância no eixo. Aqui, cada cabeça seu segredo. Uns limitam-se a furá-lo com um trado em pontos estratégicos. Outros rasgam-lhe fendas na horizontal, onde embutem pequenos seixos ou pequenas lâminas metálicas que vibram como palhetas de realejo ou tubos de órgão.
Outro requisito importante, reside na colocação das relhas. Estas devem entrar de tal maneira justas que façam dos três elementos das rodas, o meão e as duas cambras, um todo único, maciço, firme. Um carro de rodas bambas será sempre um carro desafinado.
Por último, o encaixe das rodas na espiga do eixo. Devem entrar à pressão, a poder de muito malho rodeiro.
Se tudo isto for seguido à risca, pode o dono do carro entrar afoitamente nas competições de carros cantadores ao desafio. Umas das mais renhidas eram os carretos.
Noutros tempos, quando qualquer vizinho resolvia erguer casa nova, marcava data e todos o iam ajudar a trazer a pedra do monte.
Lidar com pedras, só por si, já provoca um secão de alto lá com ele. Se a isto juntarmos o hábito de o dono da casa pôr à disposição dos vizinhos iscas de bacalhau à lambuzana e vinho a rodos, poderemos fazer uma pequena ideia da festa que não era um carreto. Todos queriam que o seu carro cantasse mais do que o dos outros. Daí vá de carregar pedra até à ponta dos estadulhos. Raro o carreto em que um ou dois carros se não viessem abaixo das rodas. Muita sorte se ninguém, homem ou animal, se aleijasse.
Nos dias de carreto, as aldeias vizinhas quedavam, de ouvido atento à ópera das primas donas e dos tenores dos carros de Peireses. Mas que festa aquilo não era.
Outro momento propício a botar figura, acontecia por altura da carrada do centeio. Os mais sensatos limitavam-se a dez pousadas, ou seja, cinquenta molhos, por carro. Outros aventuravam-se a trinta, por vezes mais. Nada fácil, meter trinta pousadas num carro. Mas eles conseguiam-no. Depois desciam a rua mui de passo, a dar tempo a que os vizinhos admirassem a maravilha.
O mesmo acontecia na recolha dos fenos, com grandes carradas de cantos enfeitados com ramos de salgueiro em flor.
Em Outubro, depois da sementeira do centeio, e em Maio, depois da plantação da batata, em que se varriam as cortes e era necessário estrumá-las de novo, todas as manhãs desciam dos montes dezenas de carros de mato. E era um regalo ver quem maior carrada fazia, qual o carro que mais cantava.
Obviamente, para grandes carradas eram precisos grandes bois. Os barrosões sabiam-no. Por isso, aqueles que podiam, para além das vacas, todas de raça barrosã e mais destinadas à criação e a trabalhos leves, tinham uma junta de bois mirandeses para os trabalhos mais pesados.
Por vezes, impressionava-me até às lágrimas a contemplar esses belos animais, dóceis e possantes, apostos a carros magnificamente carregados e de goelas magnificamente afinadas.
Podem por isso imaginar o meu alvoroço quando, esta manhã, andando eu no fundo dum vale à cata de níscaros de castanheiro, aqueles que mais aprecio, ouvi cantar um carro. Há que séculos eu não ouvia cantar um carro. Corri encosta arriba, esfalfado e trôpego, mas alegre como criança que ouve um foguete, uma sirene, uma concertina. E quanto mais eu me aproximava, mais a música subia na placidez dos campos e do azul do céu. Que grande carrada, que grandes bois!, dizia para comigo enquanto arrastava o reumatismo e as botas em direcção a um pequeno cômoro sobranceiro ao caminho.
De chofre, estaquei, de boca aberta. Tinha à minha frente dois burros atrelados a uma carroça de esterco...
– Sim senhor!, exclamei de mim para comigo, não haja dúvida de que estamos no reinado dos burros...
 Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 108 e ss.)
1 Oh, que felizes os homens do campo, se compreendessem a sua felicidade!


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