sexta-feira, 10 de junho de 2011

TERRA DE PEREIRAS

Tenho sido um voraz roedor de fruta. Principalmente de peras.
Ou não tivesse eu nascido numa terra de pereiras.
O poeta José Dias Baptista, perito na arte de descobrir a etimologia dos topónimos, aventa que Peireses vem do nome dum indivíduo chamado Pero ou Peiro.
Deve ter razão. Eu é que devia andar enganado.
Dava ao topónimo a mesma origem, mas andava convencido, e se calhar ainda ando, de que pero ou peiro não é nome de pessoa, mas sim nome dum fruto e duma árvore. Pero, igual a fruto, peiro ou pereira igual a pereira.
Decifração da charada: Peireses, terra de peras ou pereiras.
A não ser que esta derivação corra parelhas com a de Camilo Castelo Branco quando afirma que «a Sanardã é de raiz persa. O sucessor de Cambises e predecessor de Dario, chamava-se Samardous». E acrescenta: «Estes meus processos etimológicos são da escola de Amador Pinheiro das «Antiguidades de Évora». Que Samardous viesse e desse o nome à Samardã, é hipótese melhor de aceitar que a outra de ter vindo o herói de Homero fundar Lisboa; porque chamando-se o herói Odisseus, não é crível que em Lisboa se crismasse de Ulisses.»1
Seja como for, nos belos tempos da minha infância, Peireses era terra de peras ou peros, que o mesmo é dizer, peras grandes e pequenas.
Maioritariamente destas, a que chamavam cornicabra.
Ora aqui está um vocábulo cuja etimologia não oferece dúvidas. Mas engana. Cornicabra, ou corno de cabra, sugere coisa dura e azeda. E as ditas peras eram moles e doces.
Estas, repito, as mais abundantes. Mas havia também as chamadas peras de Inverno, grandes, rijinhas, saborosíssimas.
Aguentavam-se nas árvores até fins do Outono, Inverno dentro.
Mesmo depois dos respectivos donos as haverem colhido, ficavam sempre meia dúzia delas ocultas entre a folhagem dos ramos mais altos. Era nessas que eu mais gostava de ferrar os bons dentes que Deus me deu, boa parte dos quais, graças ao Altíssimo, ou fruta do alto, ainda conservo na terceira idade.
Se ficam a pensar que eu era um ratoneiro de peras, não se enganam. Eu, e todos os da minha criação. Aquilo era uma guerra sem quartel entre a canalha e os donos das peras.
Eram muito ciosos das suas pereiras, os de Peireses.
Uma noite um deles levantou-se da cama para ir à horta e deu tento dum gatuno na pereira. Pegou numa reiuna de carregar pela boca e aí vai disto.
– Ó Manuel? Não me digas que me davas um tiro por causa duma pêra?
– Não é pela pêra. É pela falta de respeito.
E está dito tudo. O que os de Peireses não admitiam, eram faltas de respeito. Que, de peras andavam eles fartos. A ponto de os criados de servir se queixarem: «De manhã, pão e peras; ao meio-dia, peras e pão; à tarde pão e peras e à noite, peras me dão...»
Claro que em Peireses não havia só peras.
Havia maçãs, cerejas, ameixas, nozes, para só falar das mais abundantes e pomareiras.
A partir dos anos quarenta, os lavradores, a pretexto de que os garotos davam cabo dos renovos, deram cabo das fruteiras.
Falácias.
No fundo, o que desterrou as árvores de fruto dos campos de Peireses, foi o advento do reino da batata.
Da fruta, ninguém fazia um tostão. A batata dava um dinheirame maluco.
Quem tinha batata, tinha tudo. Fruta inclusive.
Precisamente em Setembro, começavam a aparecer os da Ribeira com burros carregados de fruta para trocar por batata, ela por ela.
Os mais assíduos eram os das Boticas, os frutiqueiros de que reza a «Cantilena dos Almocreves». Negociavam predominantemente em maçãs, por sinal bem boas.
– Lá vêm os da maçuca – exclamavam as donas de casa, com algum desdém.
– Não trazem eles um saco de chouriças... – retrucava, como já disse, mestre Saias, com um sorriso velhaco na bochecha oleada de toucinho.
Nos últimos tempos, com o declínio da batata, a fruta está a regressar aos quintalórios de Peireses. Mas ninguém faz caso dela. Apodrece nas árvores, estruma o chão, fermenta, exala mau cheiro.
Da minha janela, avisto o quintal dum vizinho, do outro lado da rua. Tem lá de tudo, ao abandono. Durante o mês de Agosto, consolei-me a olhar para uma figueira carregadinha de figos brancos, grandes, a aloirar ao sol. «Qualquer dia depenam-na» – pensava eu. Pois enganei-me. Ninguém lhe tocou...
Para onde teriam ido os rapazes de Peireses? Na minha criação devorávamos tudo ainda no leite. Peras, ameixas, cerejas, brunhos, maçãs. Nem as amoras escapavam.
Agora apodrece tudo nas árvores. Peras, ameixas, figos, pêssegas, já caíram.
As maçãs aguentam-se um pouco mais. Continuam nas árvores, a corar ao sol de Setembro. E que belo aspecto elas têm.
Ainda ontem, indo eu de passeio vespertino, parei a olhar para uma jovem macieira camoesa, que deve ser filha ou neta duma outra que permanece nas minhas recordações infantis por um episódio desagradável.
Estava eu em bicos de pés e mãozinha no fruto, desemboca dentre o milho o meu falecido vizinho Miguel do Pinto e espeta-me dois pontapés valentes.
Nunca lhe perdoei.
E ontem, numa reacção de vingança póstuma, colhi uma e ferrei-lhe os dentes.
Cachicha! Azeda como rabo-de-gato, que toda a gente diz que é azedo, mas eu nunca provei...
Cuspi fora e disse para comigo: «Miguel, estás perdoado. Quem se borra por uma coisa destas, merece bem uns pontapés... "
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1 Novelas do Minho, volume III, pág. 13.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 104 e ss.)

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