25 de Junho de 1976
• Eu acabara, com o quinto ano do liceu, a minha aprendiza gero do francês. Era nas férias de 1917, tinha eu portanto quinze anos. Ano terrível foi esse, de carências, fome, desordens, assaltos, derrotas, epidemias. Meu irmão voltou de França, do CEP esmagado a 9 de Abril, para vir morrer nos meus braços a 29 de Novembro, num quarto lúgubre do Hospital de São José, poucos dias antes do assassínio de Sidónio Pais. Davam as quatro horas da tarde no sino de um relógio, talvez o da capela, quando ele soltou o último suspiro. Corri desvairado a chamar um enfermeiro que para sempre veio fechar-lhe aqueles olhos negros, nunca saciados de amar a vida. Tinha ele vinte e três anos. Lembro-me de que, sacudindo as grades da cama, cego de lágrimas, eu tive apenas este brado de horror, protesto e pena: «Injustiça! Injustiça!» (Quantas outras eu presenciara já, e teria de presenciar ainda, impotente para as impedir!)
Duvidoso do meu «aproveitamento» em francês, resolvi proceder a um severo auto-exame. Tinha comprado num alfarrabista um exemplar brochado da Thaïs, de Anatole France, na sóbria edição Calmann-Levy, 1902, que ainda ali tenho entre alguns livros estimados. Abri-o: «En ce temps-là le désert était peuplé d'anachorètes»... Apaixonou-me logo.
Resolvi lê-lo todo, palavra por palavra, sentado na cadeira de braços, na varanda donde observava os, mais tarde, pátios e personagens da «Dona Genciana». Lendo, marcava a lápis os vocábulos ignorados – eram numerosos! – e procurava-os no Dicionário de Fonseca – outra relíquia que se sumiu na voragem familiar. Acabada a primeira leitura, voltei ao começo, e de novo procurei no grosso dicionário aqueles que esquecera, dos vocábulos marcados. Eram ainda muitos. Finda essa leitura – quantas tardes de sol durara isto? – retornei ao começo e reli uma vez mais todo o romance. Tinha apagado todas as marcas. Desta vez não tive de procurar nem um só vocábulo. Aprendera-os todos, Assim fosse hoje... Concluí que sabia francês e concedi-me generosa aprovação. Ao jantar desse dia bebi um segundo copo de vinho.
Não o releio há muitíssimos anos. Mas ainda recordo, deliciado, as suas palavras finais. Quando o monge Paphnuce (Pafúncio em português, que horror!) assiste à fuga das monjas espavoridas com a aparência do amante e pecador:
«Un vampire! Un vampire!
Il était devenu si hideux qu’en passant la main sur son visage, il senti sa laideur.»
Quem o escreveria hoje melhor? E quantos teriam hoje a paciência de o reler como eu fiz? Aprender francês...
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