quarta-feira, 1 de junho de 2011

conta-corrente – nova série I (1989)

1 - Junho (quinta). Ah, como estou a ponto de abominar a literatura, a que é feita de coisas a acontecer. Como é de vómitos abrir um livro e ler qualquer coisa como «A casa que F. veio habitar ficava numa colina» ou «F. saiu de casa nessa noite sozinho» ou com a mulher ou com o cão, que também tem direito, etc. etc. Farto, farto, FAR-TO! O romance é normalmente uma estratégia montada para um cão de caça. O leitor vai farejando aqui e acolá para saber onde está. E o que é que aconteceu. Que diabo nos importa se F. é solteiro ou encontrou a mulher a fornicar com o motorista ou que tal estava a baile em casa do senhor Badalhoco e assim? Não é o que acontece que importa, mas o que de nós acontece nesse acontecer e sobretudo no intervalo disso e sobretudo quando nada acontece. Porque aí é que pode acontecer tudo o que não tem nada que ver com um cão de caça. Como diabo as pessoas ainda se interessam pela «história» (ou «história», à brasileira) de um livro? Como raio é que pessoas dessas têm a lata hipócrita de gostar de música, a não ser a de ópera por causa das historietas aí entrelaçadas? Como é que esses atrasados mentais fingem gostar de um quadro? São tipos primários que armam a evoluídos. Também contei histórias e nem é muito difícil, quando iniciei o meu percurso de adulto. Também se espremem coisas do que mesmo agora escrevo. Mas isso é subsidiário como um garfo com que se come ou o açúcar do café para quem não gosta dele amargo. E ponto final no apostrofar. É-me insuportável a literatura triunfante. E paralelamente e opostamente e justamente é insuportável a minha aos que deliram com a outra. Bem feito, para eu não ser parvo. Porque, se calhar, é o que realmente sou.
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Mário Soares anda pelos Açores. E hoje dormiu no Corvo, que é uma rocha de que Deus se esqueceu para ali quando andava a construir o Mundo. Há uns 20 ou 30 anos já por lá andei. Fui com a Regina de avião para Santa Maria, daí para S. Miguel e daí, no «Ponta Delgada», que já deve ter talvez morrido de velhice, fizemos o périplo duplo das ilhas, com desembarque em todas, excepto na Graciosa por incompatibilidade de horários. Os continentais ignoram a beleza incrível das ilhas, mesmo talvez depois de lá terem ido. Fixei na memória o que pude para ainda agora me extasiar. Mas o Corvo. Raúl Brandão disse que o mais singular (ou belo?) de cada ilha é a que lhe fica em frente. A da frente do Corvo são as Flores. Mas acaso se imagina que encontrámos corvinos que nunca tinham ido sequer lá? O mundo plausível de um homem é tão curto. Uma aldeia, um bairro de uma cidade. Por mim deitava fora 4/5 de Lisboa e não lhes sentia a falta. No nosso périplo ia o Côrtes-Rodrigues, que é açoriano e foi elemento grande do Orpheu e que nunca tinha visitado (quase?) nenhuma outra ilha além de S. Miguel. No Corvo a Regina e eu fomos dos pouquíssimos passageiros que desembarcámos e os únicos que, percorrido um breve troço da estrada numa furgoneta, subimos à pata com cicerones indígenas até às caldeiras onde em sossego pastavam algumas vacas. E vimos um corvino atrás de uma junta de bois pisar (malhar) o trigo, sustentando numa mão um largo bacio para apanhar a bosta e evitar que ela conspurcasse o trigo malhado. E vimos corvinos que tinham andado na América e regressaram à pasmaceira do paleio, sentados à roda de um largo ali perto a explicar a eternidade. Belíssima ideia a de Mário Soares. Até porque, no insaciável humano, anda já por lá a tosca insensatez de independência. Quando chegará esse anseio insofrido às Berlengas?
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O Vital Moreira, grande responsável pela Constituição que temos gramado, teve enfim a sua iluminação de Damasco e declarou urbi et orbi que o marxismo-Ieninismo era uma balela. Piou a tempo. E tem o aval do sólido catolicismo que diz que um patifório durante toda a vida recolhe ao paraíso se se arrepende a tempo. Vital Moreira não foi um patife. É um homem inteligente que de há muito a gente admira. E não se arrepende à última hora. Fazia-me impressão era que ele não tivesse ainda descoberto o logro. Descobriu. E tem uma vida à frente para pôr a funcionar a descoberta.
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Hoje, sem dizerem água vai, os diários subiram a bitola do custo do nosso alfabetismo. Mas há-de subir mais. Até a gente descobrir que o mais seguro e económico é ser analfabeto. Por mim para lá caminho. E prevejo desde já a minha beatitude aí. Porque enfim, ao que suponho, no paraíso não deve haver jornais.

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