Sofía Gandarias
À pergunta
angustiada, ainda que carregada de uma retórica fácil, que o papa lançou em Auschwitz para
surpresa e escândalo do mundo crente: «Onde estava Deus?», vem esta grande
exposição de Sofía
Gandarias responder com simplicidade: «Deus não está aqui». É evidente que Deus não leu Kafka e, pelos vistos, Ratzinger também não. Não
leram nem sequer Primo Levi,
que está mais perto do nosso tempo e nunca se serviu de alegorias para
descrever o horror. Se se me permite a ousadia, eu aconselharia ao papa que
visitasse, com tempo e olhos de ver, esta exposição de Sofía, que escutasse com
atenção as explicações que lhe fossem dadas por uma pintora que, sabendo muito
da arte que cultiva, muito sabe também do mundo e da vida que nele temos feito,
os que crêem e os que não crêem, os que esperam e os que desesperam, e os
outros, os que fizeram Auschwitz e os que perguntam onde estava Deus. Melhor
seria que nos perguntássemos onde estamos nós, que doença incurável é esta que
não nos deixa inventar uma vida diferente, com deuses, se quiserem, mas sem
nenhuma obrigação de crer neles. A única e autêntica liberdade do ser humano é
a do espírito, de um espírito não contaminado por crenças irracionais e por
superstições talvez poéticas em algum caso, mas que deformam a percepção da
realidade e deveriam ofender a razão mais elementar.
Acompanho o
trabalho de Sofía Gandarias desde há anos. Assombra-me a sua capacidade de
trabalho, a força da sua vocação, a mestria com que transfere para a tela as
visões do seu mundo interior, a relação quase orgânica que mantém com a cor e o
desenho. Sofía Gandarias é, toda ela, memória. Memória de si mesma, como
qualquer, em primeiro lugar, mas também memória do que viveu e do que aprendeu,
memória de tudo o que interiorizou como algo próprio, memória de Kafka, de
Primo Levi, de Roa
Bastos, de Borges,
de Rilke, de Brecht, de Hanna Arendt, de quantos,
para tudo dizer numa palavra, se debruçaram do poço da alma humana e sentiram a
vertigem.
Nota: Texto
para a exposição «Kafka, o visionário», de Sofía Gandarias, que poderá
visitar-se na Haus
am Kleistpark de Berlim a partir do dia 28 deste mês.
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