domingo, 15 de maio de 2011

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

15 de Maio
Verifico, com discreta mas justificada satisfação, que se mantêm em estado de bom funcionamento, para não dizer que me parecem de todo intactos, os dons de imaginação e engenho com que vim ao mundo, graças aos quais pude chegar aonde felizmente cheguei. Agora, de modo súbito, porém não inesperado, tendo em conta os antecedentes, vejo abrirem-se diante de mim perspectivas novas, possibilidades de novos triunfos, não mais limitados a esta fatigante trivialidade de escrever e publicar. O caso conta-se em rápidas palavras. Quando foi preciso decidir como deveria ser revestida uma parte importante do chão da casa, escolhi umas lájeas de cor castanho-escura, de superfície brilhante e irregular, que no catálogo do fabricante italiano se apresentavam com o prestigioso e evocativo nome de Brunelleschi. Há que dizer que o fornecedor aplaudiu o gosto. Vieram os ladrilhos (atenção: os Espanhóis chamam ladrillo ao que nós chamamos tijolo) e procedeu-se ao seu assentamento. Porém, por um erro que até há poucos dias parecia não ter remedeio, a argamassa saiu mais clara do que convinha, donde resultou que a indiscutível beleza das minhas lájeas se viu afectada pelo quase branco e obsessivo quadriculado formado pelas juntas. A família não pareceu importar-se muito, que, enfim, diziam, não era assim tão mau, embora Pilar, a sós comigo, reconhecesse que Brunelleschi, realmente, não merecia aquele tratamento. Acrescendo que o meu olho esquerdo, por defeito da mácula, tende a ver duas imagens onde só uma existe, pode-se imaginar que chão tenho andado a pisar. Mas bem certo é que nunca se proclamará demasiado que a necessidade aguça o engenho. Depois de mil e uma perguntas a outros tantos supostos entendidos sobre como poderiam ser decentemente escurecidas as agressivas juntas, respondidas todas elas, as perguntas, ora com um pungente encolher de ombros, ora com uma peremptória declaração de impossibilidade, foi um simples escritor, ainda por cima nunca ouvido em tais matérias, que teve a fortuna, e por que não o merecimento, de encontrar a solução: o chá. Sim, o chá. Tomava eu, numa destas manhãs, o meu pequeno-almoço habitual, composto de torradas, sumo de laranja, chá e iogurte, quando de repente, com a evidência deslumbrante da pura genialidade, compreendi que a solução estava no chá. Como a vida, no entanto, ensina a ser prudente, e o mundo dos inventores está cheio de frustrações imerecidas, resolvi fazer secretamente a primeira experiência, e num canto do escritório, temendo a cada instante ser surpreendido pelo risonho cepticismo de Pilar, verti numas poucas juntas o chá que de propósito deixara ficar. O resultado foi esplêndido. Agora, como um operário escrupuloso que não olha a penas nem a sacrifícios, de joelhos no chão, indiferente ao ridículo, faço avançar em cada dia este trabalho duas vezes louvável: o de melhorar a aparência da casa e, graças ao chá, dar a Brunelleschi a moldura que merece. A família não sabe bem como comportar-se: gostaria, creio, de aplaudir o feito, mas ainda não se conformou com isto de um mero escritor de livros se permitir mais ideias que as literárias...

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