terça-feira, 24 de maio de 2011

O MELRO À JANELA

Setembro chegou ao fim. Eu gosto de Setembro. Da doçura da sua luz, do seu cheiro a mosto. Do seu cheiro a mosto a perfumar o ar, da doçura da sua luz reflectida nas montanhas. Montanhas recortadas no azul do céu de Setembro por uma linha tão límpida e segura como um traço de Leonardo da Vinci. Límpidas silhuetas do Gerês, da Cabreira, das Alturas, do Larouco. Ia a dizer: da Mourela. Mas já não digo. Foi invadida por uns monstros de fibrocimento ou lá o diabo que é. Lá o diabo que é, não. Coisas do diabo é que devem ser. Como se o divino artista fosse inesperadamente atacado por um espirro, a pena se lhe escapasse e fizesse aquele sarrabisco na limpidez do desenho.
De todas as serras de Barroso, a de luz mais doce e diáfana, é o Gerês.
Ontem, de viagem para aqui, desde o Penedo que vinha à procura dum recanto onde pudesse parar o carro e pascer os olhos no Gerês. Encontrei-o por alturas da Cabreira. Um recanto à primeira vista encantador. Árvores, mesas e bancos de granito, um fio de água a cantarolar numa bica. Mas ao aproximar-me da berma, recuei, horrorizado. Uma nuvem compacta de varejas, ou o diabo por elas, de súbito irritadas com a minha presença, levantara voo duma enorme e imunda lixeira e avançava para mim de trombeta ao ataque, prestes a devorar-me. Fugi espavorido a unhas de cavalo, que é como quem diz, com todos os cavalos do motor à brida larga.
Enquanto assim vinha, a cortar as curvas por dentro, avistei ao longe, ainda nos confins do horizonte, um rotundo cogumelo de fumo a crescer nos ares. Lembrei-me do adágio: «Em Setembro secam as fontes e ardem os montes.»
Afinal, não era incêndio nenhum. Era a chaminé do Caldeirão de Pera Botelho, instalado mesmo à beira da estrada, a vomitar na atmosfera rolos compactos de negros gases tóxicos, resíduo de óleos queimados, quiçá produtos de alcatrão, altamente silicóticos e cancerígenos.
Quem seria o criminoso que licenciou, se é que está licenciada, uma monstruosidade destas?
À falta de máscara antigás, acelerei de novo. E só me detive à vista da minha aldeia, em terrenos familiares. Parei de novo o carro, saí fora, fiz peito:
– Agora posso respirar à vontade, longe de gases tóxicos, longe de lixeiras fedorentas, longe da maldita poluição...
Como a gente se engana... Ainda mal tinha aventurado meia dúzia de passos, por um carreirito entre giestas, esbarrei no cadáver dum colchão esventrado, molas ferrugentas à mostra, um líquido purulento a escorrer das costuras... Ia a fugir do colchão, bati com acanela no esqueleto dum frigorífico... Ia a fugir do frigorífico, embati de peito na carcaça duma furgoneta de caixa fechada... Ia a fugir da furgoneta, enterrei-me num monturo de lixo: restos de trapos, de calçado, de trastes, de plásticos, de cacos, de porcaria...
– Meu Deus! – exclamei – Em que inferno estes selvagens estão a transformar o paraíso da minha infância...
Aturdido e nauseado, refugiei-me em casa. Abri a janela e aí fiquei, triste e meditabundo. Até que o sol se foi e a lua veio. Então fechei a janela e fui para a cama.
Pôs-se a lua, nasceu o sol, e eu a dormir. Acordei com umas pancadas esquisitas. A primeira impressão foi a de que alguém me batia à porta. Mas breve me apercebi de que aquilo não eram pancadas de quem bate à porta. Era uma espécie de morse, uma mensagem, uma confidência, uma saudação.
Entreabri a portada da janela. Quedei de boca aberta. Um melro a bater na vidraça...
– Que estará ele a fazer? – perguntei de mim para comigo – A exercitar o bico? Aos beijos na própria imagem? A querer transmitir-me um segredo: Uma declaração de amor? Ou simplesmente a chamar-me preguiçoso?
Com medo de que ele se assustasse e se fosse embora, afastei-me. Mas continuei, manhã fora, a ouvir aquela música ritmada: tau-tau; tau-tau-tau; tau.
Um melro a bater à janela... Que maravilhosa terra a nossa!
Amaldiçoados sejam aqueles que lhe colocam torres de fibrocimento no cimo das montanhas. Amaldiçoados sejam aqueles que lhe colocam chaminés poluentes à berma das estradas.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 90 e ss.)

3 comentários:

  1. O Gerês me encanta e chama
    as suas montanhas agrestes, tão despidas, por mimosas invadidas, mas sem perderem a majestade.
    O lixo que encontrei em sacos recolhi, não amaldiçoei, antes me entristeci
    pela ignorância, ganância e também insensatez, pobreza de espírito.
    Mas mais alto falaram as montanhas, a água que bebi nos rios, a liberdade que aspirei, o olhar que longe se estendeu, a vibração que comigo trago e não esquece.
    E depois, no agora...
    Também há um melro que vem bater à janela.
    E aqui não há montanha,
    aqui, aldeia saloia, perto do mar plantada
    quase à sombra do convento nascida,
    nesta terra que se chama Achada
    maravilhosa também sem dúvida,
    porque berço que me viu nascer, desabrochar e crescer
    Também aqui há um melro que bate na janela
    Com início a 2 de fevereiro, sempre pelas 7h20m, mais coisa menos coisa
    aí está o meu amigo que todos os dias me vem despertar.
    E se eu não me movimentar, por volta das 9h ele volta a insistir.
    Ainda não entendi o que me quer dizer.
    Mas eu sempre disse que o quintal que tenho junto à casa é terra, por minha avó abençoada.
    Agora que a trago descuidada será que o melro vem para protestar?
    Mas para mim é bênção viva, é graça que me encanta mas
    que também me questiona
    Que mensagem traz ele que eu ainda não consegui ler?
    Tenho-me deixado simplesmente encantar mas se alguém tiver uma ideia, um conhecimento que a minha ignorância, ou falta de sensibilidade, não está a atingir...
    Agradeço dicas, o que for
    Acima de tudo agradeço esta bênção
    E toda a beleza que na montanha e fora dela esta vida tem para oferecer.

    Bem hajam a todos os que deixam o seu olhar voar junto com o bater das asas dos pássaros

    Esmeralda

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    1. Esmeralda, tem-me acontecido o mesmo. Um melro, mais tardio do que o seu, bica má minha janela todos os dias. Já conseguiu algum esclarecimento?

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