segunda-feira, 23 de maio de 2011

Vergílio Ferreira - 1989

23 - Maio (terça). Ontem o Europeu trazia uma entrevista com o António Vitorino de Almeida, músico ambulante e polimorfo, figura pública de entreténs musicais, muito dado ao progresso, que dizia não haver marcha-atrás nas arrecuas dos países comunas e que pelo contrário essa aparente inversão de marcha era sinal de que o sistema se aprofundava e não de que se afundava. É um dizer bonito e exemplar, não é verdade? Em Évora ainda na Travessa do Sabugueiro, quando era ainda tempo de haver criadas e de se poder tê-las, tínhamos lá em casa uma rapariga importada de Melo a quem lá chamavam Emília Vedora. Transplantada para a cidade ou por hábitos já antigos, meteu-se com más companhias e um dia a Regina reparou que a sua zona maternal estava a tornar-se muito visível. E levou-a a um médico amigo:
Rapariga disse ele tu estás grávida.
Ela riu-se imenso com a pilhéria do médico agora grávida, o senhor doutor tem cada uma.
Não estás? Então espera.
E apertou-lhe uma mama que espirrou leite. Ela riu-se outra vez, o senhor doutor tem cada ideia.
Creio que ao parir o filho ainda negou que estivesse grávida. Tal é o processo ainda em uso entre os comunas e os seus parentes mais chegados. Poderemos condená-los por isso? Há aí alguém que se atreva a contradizer a Emília Vedara?
*
Deve ser coisa normal. Mas mesmo o muito normal tem sempre um lado estranho que o não é ou não parece. No fundo é a visceral ambição de se ser proprietário, é assim. De vez em quando há um tipo que se atira a escrever-nos. Leu um livro (ou viu um quadro ou ouviu uma música, ou) e obviamente vem-lhe a ideia de nos invadir os nossos domínios e fazer aí a sua morada. No fundo é o desejo de tomar real a irrealidade que o abalou, apropriar-se dela, ser o seu dono como os revolucionários das classes desfavorecidas. E a gente, um pouco por gratidão para quem nos reconheceu e um pouco por ideal igualitário, deixa-o entrar. Mas uma vez entrado, não mais quer ir-se embora. Está ali muito bem, instala-se no que lavrámos e cavámos como se lhe impusesse a sua reforma agrária. Se nos escreve, fica muito contente quando lhe respondemos. Mas aí, ele escreve outra vez, alargando, se possível, o paleio. E a gente diz-lhe ainda coisas por espírito de compreensão. Mas chegado aí, o invasor avança mais nos passos da conversa e parceirismo e exige que a nossa cordialidade seja conforme. A admiração ou lá o que era minguou na razão inversa do porreirismo que buscou. Porque já não há motivo para persistir. Até que, como no romantismo apaixonado, o amante perde interesse e é muito possível que se lhe cuspa em cima. Mas porque não, se o irreal foi real e o real é para isso que existe? Toda a paixão acaba normalmente num par de cornas. Toda a admiração também. É dos livros de psicologia humana que (interrompido).
*
Foi humilhado desde a infância, lutou a vida inteira e já no fim dela venceu. Mas todos aqueles que desejava humilhar por sua vez já tinham morrido.
conta-corrente – nova série I (1989)

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