sábado, 21 de maio de 2011

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

21 de Maio
A Madrid, para a «Semana de Autor». No avião leio o Expresso chegado esta manhã e encontro recolhida uma curiosíssima declaração de Carlos Queirós, o seleccionador nacional de futebol, que novamente me fez pensar em como andam desconcertadas as opiniões neste mundo e no difícil que será chegar a acordo sobre as questões fundamentais quando logo nas outras, mínimas, nos vemos desencontrados. Disse ao Diabo o nosso especialista em tácticas dentro das quatro linhas: «As pessoas que não são capazes de perceber a beleza do futebol ou do jogo são exactamente as mesmas que não são capazes de ler o Astérix nem percebem a beleza que existe nuns Beatles. Esses são os intelectuais. São capazes de estar em casa a ver um filme de cow-boys e a ouvir os Bee Gees. Se tocarem à campainha, mudam para Tchaikovsky e pegam num livro do Saramago.» Não duvido que o estimável Carlos Queirós saiba muitíssimo de futebol, mas de intelectuais parece saber bem pouco, e sendo certo que eu próprio não me posso gabar de os conhecer de raiz (vivi a maior parte da minha vida entre gente mecânica ou assimilada), creio dispor hoje de algumas luzes sobre os usos e costumes dessa nata em que, emprestadamente, também eu nado ou sobrenado. Intelectuais conheço eu que se regalam com os filmes de cow-hoys, que adoram os Beatles e aborrecem os Bee Gees, e, no que se refere ao autor do Evangelho segundo Jesus Cristo, soube eu de fonte seguríssima que sempre foi fanático do Astérix e que jogou ténis em tempos que já lá vão. E também soube que não ficou nada satisfeito ao ver-se acasalado com o Tchaikovsky, que não é músico das suas predilecções nem de nenhum dos intelectuais que conhece...
No aeroporto de Madrid esperava-nos Julián Soriano, que conhecemos desde Mollina, em Fevereiro, por ocasião do Foro Joven, aonde ele, como responsável pelas actividades culturais do Instituto de Cooperação Iberoamericana, foi convidar-me para a «Semana de Autor». Trazia consigo um exemplar do livro Racismo y Xenofobia, editado pela Fundação Rich, em que colaborei. No caminho para o hotel noto que o meu texto aparece em português, levando em apêndice a respectiva tradução. Estranho a novidade, mas deixo logo de estranhar ao saber que a sugestão foi de Pilar, e uma sugestão de Pilar tem, como sabemos, força de lei... Ainda bem não estou instalado já me esperam, para entrevistar-me, jornalistas de três jornais, e, atendendo ao programa que Soriano me entregou à chegada, é apenas o princípio de uma longa série que irá continuar nos próximos dias, até ao último. Mal acaba a terceira conversa corremos a um concerto de Maria João Pires. Regalo-me com os aplausos como se fossem coisa minha. Conhecia Maria João há muitos anos, aí pelos finais dos anos 60, e nunca mais voltei a encontrá-la. No intervalo, guiados por Mário Quartin Graça, fomos cumprimentá-la ao camarim, e aí, da boca de uma mulher que tem acumulado arte e triunfos, ouço, em resposta aos meus agradecimentos e felicitações, estas palavras completamente inesperadas: «Mas olhe que os livros é que são aquilo de que mais gosto...»

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