terça-feira, 17 de maio de 2011

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

17 de Maio
Por incrível que possa parecer, fomos ontem à praia pela primeiro vez desde que nos instalámos aqui. Temos apanhado algum sol na açoteia da casa, conscienciosamente besuntados de óleos protectores e sem mais testemunhas que as aves do céu e os anjos do Senhor, mas a verdade é que uma hora de exposição nestas condições não chega a valer nem dez minutos ao pé do mar. Pensei que iríamos a Famara, mas havia que recolher em Playa Blanca a Juan José, que estivera acampado na ilha de Lobos durante o fim-de-semana. Depois, se tudo corresse como estava previsto, passaríamos o resto do dia na praia de Papagayo. Por causa duma confusão, e consequente perda de tempo, sobre o lugar onde deveríamos encontrar-nos, acabámos por ficar ali mesmo, na praia do Flamingo, com o que, finalmente, se poderá dizer, de alguma forma, ter-se cumprido o programa, uma vez que permanecemos no domínio da ornitologia tropical...
«A terra é pequena, e a gente que nela vive também não é grande.» Esta feroz e dolorosa frase de Alexandre Herculano veio-me uma vez mais à memória enquanto lia uma notícia sobre o colóquio de filósofos realizado no Porto para assinalar o meio século de publicação de O Problema da Filosofia Portuguesa de Álvaro Ribeiro. Não estive lá, não posso fazer juízos sobre a excelência do evento, e, de resto, a chamada «filosofia portuguesa» deixa-me totalmente frio, o que não me impede de reconhecer que alguns velhos escritos de José Marinho souberam, ocasionalmente, vencer uma indiferença que o tempo, por outro lado, só veio a reforçar. Mas eu, escusado será dizê-lo, de filosofias não entendo nada, nem sequer das portuguesas, que devem ser das mais fáceis... A certa altura, conta o Público, armou-se uma violentíssima guerra verbal por causa de Nietzsche e da «viva repulsa» que, no dizer de Orlando Vitorino, o alemão causava a Álvaro Ribeiro... Birras de filósofos, imagino. No fragor dos insultos houve quem se lembrasse, com a melhor das intenções, suponho, de invocar a lição de tolerância do mais recente romance (!) de Saramago, ln Nomine Dei. Parece que uns poucos dos presentes aplaudiram, mas um congressista juvenil, Gonçalo Magalhães Colaço (dos Magalhães Colaços?), indignado, alegou «nunca poder Saramago ser brandido como exemplo de tolerância». Este moço ainda terá de brandir muito, ainda terá de comer muito pão e muito sal, e andar por muito congresso, antes de perceber (se perceberá alguma vez) que mundo de tolerância se poderia construir com esta minha intolerância... Gonçalo não sabe de que fala, só leu os insultos do Diabo, e essa é a sua filosofia.

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