sábado, 14 de maio de 2011

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

14 de Maio
De Bernard Genton leio um ensaio cujo título – Une Europe littéraire? – me traz à lembrança, irresistivelmente, aquele outro não menos inefável tema – La littérature portugaise est-elle europenne? – sobre que, por imposição leviana da organização do «Carrefour», fui obrigado a discorrer em Estrasburgo, há alguns anos. Digo «imposição» porque a criança me foi posta tal qual assim nos braços, e «leviana» porque os organizadores não tiveram antes a delicadeza elementar de me perguntar o que pensava eu do assunto. A resposta mais própria teria sido virar-lhes as costas e bater com a porta, mas, ali, com a Europa toda a olhar para mim, que remédio tinha eu senão digerir a irritação e defender a reputação da pátria, europeia, sim senhores, quer pela literatura quer pela emigração...
Parece ser cisma incurável de Franceses isto de lerem depressa e mal e entenderem ainda pior, sobretudo quando o uso e a tradição não os ensinaram a mostrar respeito pelo que têm diante do nariz. A determinada altura, escreve este senhor Genton: «Les oeuvres directement inspirées par la construction européenne sont encore rares. Dans son Radeau de pierre, Ie Portugais José Saramago détache son pays du continent que menace de l'anéantir par intégration, et imagine un Portugal flottant, à la dérive dans l'Atlantique...» Exceptuando o facto de a Jangada não ter sido, nem directa nem indirectamente, inspirada pela construção europeia, exceptuando a circunstância de não ser apenas Portugal que se separa da Europa, mas toda a Península, exceptuando ainda que não há deriva nenhuma, mas sim uma navegação sempre firmemente orientada para o Atlântico Sul, onde, enfim, a ibérica ilha se detém – todo o resto está certo...
Chegámos ao termo do prazo que Judas tinha dado à Televisão (é sexta-feira, o fim-de-semana começa), e, como se não sobrassem motivos para crer que se perderam as esperanças, ainda hoje estive a trabalhar na recolha e coordenação de dados para um trabalho que provavelmente não chegará a ser feito, pelo menos, por mim, pois em verdade não é de excluir a hipótese de que, com a proposta da série na mão, a RTP procure alguém mais no gosto de quem manda em Portugal. A minha ideia (uma espécie de ovo de Colombo, uma nova demonstração de que algo pode ser esquecido precisamente por sertão óbvio: lembremo-nos do convento de Mafra, que esperou duzentos e cinquenta anos) seria utilizar a feitura do Retábulo de S. Vicente, que se situa em cheio na época, como uma das chaves da narrativa. No essencial, propor-me-ia retomar as teses do Dagoberto Markl, que me parecem as mais coerentes e estimulantes. Contra a iconografia oficial, neste malogrado D. João II, o homem do chapeirão iria ser D. Duarte, e o infante D. Henrique o cavaleiro de joelho em terra que aparece no chamado «painel do arcebispo»... E o rosto do santo seria retocado, depois de 1491, para ficar como retrato do infante D. Afonso...

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