sexta-feira, 13 de maio de 2011

Vergílio Ferreira (13 de Maio de 1989)

13 - Maio (sábado). ln illo tempore, quando eu andava em Coimbra, era naturalmente raro que morresse um estudante. Mas já volto a isto. Esquecia-me que esta noite, às 3 da manhã, voltei a ter uma tremenda hemorragia nasal. Mas desta vez, já esclarecida pelo António Magalhães, em vez do álcool que é vaso dilatador ou seja o contra-indicado e me pusera da primeira vez, a Regina medicou-me com água oxigenada e a hemorragia estancou. Viemos para Lisboa e à tarde fui com o Magalhães aos serviços de urgência do Santa Maria e o otorrino cauterizou-me certas veias dilatadas no interior da narina. Sem o bom do Magalhães - que é médico e poeta nos intervalos - não conseguiria orientar-me no labirinto do edifício e da burocracia. De modo que não foi desta vez o Vergílio que guiou o Poeta no Inferno, mas ao contrário. E cauterizado e medicamentado, regressei a casa. Mas veio comigo ainda a cabeça impraticável em espessura e zumbideira e um frio ósseo que não tem muito que ver com o da aragem realmente fresca. O médico descobriu-me «alergia» não se sabe a quê, talvez à morte. Ou à vida. Ou talvez à Primavera, que eu amo tanto mas que me foi sempre perversa. Virá daí o frio? Da sua perversão?
*
E de súbito reparas que um miúdo que conheceste em miúdo é já um homem, que um filme que viste há pouco tempo o viste há já uma dezena de anos, que uma mulher que amaste na juventude é hoje uma avozinha. Então reparas que estás fora do tempo e que por isso, por estares fora, te surpreendes com o que acontece dentro. Então dás conta de que vives de facto na eternidade, no intemporal de ti, no absoluto de seres. E sabes depois que não vives. E é quando descobres com surpresa o pânico ou temes que és realmente mortal. Ou seja, que a verdade da vida é a morte. Curiosa coisa: o próprio Estaline o descobriu quando disse que afinal é a morte quem vence sempre. E quem o dizia era um tipo que sempre vencera. Mesmo à custa de milhões de assassinados.
conta-corrente – nova série I (1989)

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