segunda-feira, 16 de maio de 2011

Vergílio Ferreira (16 de Maio de 1989)

16 - Maio (terça). Escreve-me uma jovem de 16 anos do Porto, Magda Laires, que para a aula de Português está a fazer um trabalho sobre Até ao Fim. Os temas escolhidos são um pouco estranhos numa jovem tão jovem – eternidade, plenitude e absoluto. E envia-me uma foto de Coimbra nas costas da qual escreve. A certa altura pergunta-me se Oriana «existiu». Respondo-lhe brevemente e por «concessão», dada a estranheza dos temas que lhe interessaram, dizendo que são muito complexas as relações do «real» e do «imaginário». Mas que se uma personagem se nos impõe como tal, ela existiu mesmo. E com efeito: que pessoas existiram, se alguém as não fez existir? E que diferença fazem no seu real das que nunca de facto existiram? Mas dizia à moça que Oriana, ao que suponho e me dizem, é já um desdobramento da Sandra e que para esta tive um apoio numa colega de curso (da Faculdade) que morreu antes de o acabar. E terminada a carta, divaguei pela lembrança dos estudantes que morreram no meu tempo. Como nenhuns outros, esses nos infligiram uma tremenda estupefacção. Sandra assinou-me a sua folha do nosso livro da Queima e um mês ou dois depois morreu. Uma estranha força me rasurou essa morte – que jamais poderia ter-me passado despercebida – pois que a esqueci completamente e foi uma sua sobrinha (que tem o nome «real» da tia) que ma datou quando há meses foi do Porto a Coimbra com a Fernanda Irene para assistir a uma celebração do Eça em que tomei parte. Aliás, repensando a figura de Luísa (em O Caminho Fica Longe), suponho que a sua morte se identifica com a de Sandra. Mas de outras mortes lembro-me. A de um açoriano que numa excursão, enquanto dormia, partiu a base do crânio num varão de ferro a um solavanco da camioneta. Foi vestido de estudante para a cova. Ou de um outro que era coxo e a que faço referência em Até ao Fim, que foi apanhado na colheita de tuberculosos de uma rusga de raios X e morreu enquanto comia um bife que o seu apetite de moribundo desejou. Ou um outro, um calmeirão do futebol, que era mulato e viera das colónias com pulmões inexperientes, apanhado também pela tuberculose. E outros que não lembro e cumpriram na altura a sua missão de me aterrar. Morte na juventude. No flagrante do seu absurdo. No limiar de uma vida que se anunciava e não veio. Nunca mais isso esqueci na minha história do sentir. E o luto que a anunciava nos papéis que se pregavam nas portas semicerradas da A. Académica, nas batinas de gola fechada sobre a camisa, nas fitas recolhidas nas pastas. Pois. Mas a de Sandra não a lembro. E ela assinou-me o livro em Maio, no corredor das aulas, e com uma desenvoltura e um pouco de displicência que não dava com a doença. E morreu em Junho. De tuberculose, naturalmente.
conta-corrente – nova série I (1989)

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