sexta-feira, 27 de maio de 2011

conta-corrente – nova série I (1989)

27 - Maio (sábado). Ouço uma balada a todo o espaço da memória e ao fundo da rua vejo-te afastar-te no equilíbrio alado do teu andar. Vejo-te sempre de casaco de inverno, um casaco preto de tecido aveludado. Mas a emoção doce do lembrar não a posso dizer. Não é que haja aí uma impossibilidade de escrita, de transfusão do que sinto ao dizer esse sentir. É uma impossibilidade real, porque seria sempre outra coisa, mesmo que o conseguisse. Mas não é isso. E uma impossibilidade moral ou de equilíbrio sensível ou de senso, de pudor. Não se trata de ser piegas perante os outros, a quem posso não mostrar o que escrevi, mas perante o outro de mim que é adulto e é público, mesmo sem o ser, o outro vigiado por uma fiscalidade que não existe. É-se sensível até ao ridículo de nós na intimidade de nós, onde as normas do deve-ser não chegassem a chegar. Assim o intransmissível do mais oculto de nós tem que ver connosco, a pessoa normalizada, a que súbita e inconscientemente se investe de responsabilidade e é inexorável a infligir-nos o ridículo de sermos assim. É pois impossível vir até à superfície de nós, nem que seja no pensar-nos, ver-nos, antes mesmo de tentarmos a transfusão disso à escrita.
Ouço uma balada a todo o espaço da memória. É terna e dissolve-me todos os núcleos de actividade nessa ternura. E num movimento alado do teu equilíbrio ágil e difícil, afastas-te devagar para o fundo da rua. Não te vejo o rosto e vejo. Sério cerzido fino. Vejo mal a cabeleira pelos ombros. Só o movimento subtil do teu enleio no andar. E sei que tudo de ti se dissipará no ar ao dissipar-se também o último eco da balada.
conta-corrente – nova série I (1989)

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