domingo, 19 de maio de 2013

Luanda, 19 de Maio de 1973


Escrevo diante da mesma paisagem feia para que abri os olhos de manhãzinha e que parece abafar como eu. Paisagem seca, pulverulenta, ardida, de vegetação precária e rasteira, que algumas cabras famélicas depenam e algumas presenças arbóreas tentam em vão erguer: embondeiros disformes, edemaciados, monstruosos; mangueiras sombrias, espessas, maciças; mamoeiros esgrouviados, sintéticos, de testículos ao pescoço. Numa aplicação esforçada, tento compreender este chão em si mesmo, especificamente, mas os sentidos refilam, inseguros fora dos seus padrões habituais – transmontanos, alentejanos ou beirões. E, por mais que não queira, sinto-me nele intruso, rejeitado, excluído, com a impressão incómoda de que, se morresse aqui, seria mais facilmente comido por dois abutres que me espreitam da ponta de um galho seco do que pela terra da sepultura.
Em mangas de camisa, fui há pouco visitar a cidade. E o largo passeio pela urbe apressada, enfática, leviana, apertada num cinturão de muceques, agoirento anel de Saturno, não me desanuviou a alma. Pelo contrário. Quando regressei a casa, trazia duas metrópoles nos olhos doridos: uma, arrogante, retórica, de papelão, a negar o preto; outra, calada, tentacular, eczematosa, a negar o branco. Uma que parece um delírio febril de sitiados; outra um acampamento sorna de sitiantes.

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