sexta-feira, 17 de maio de 2013

17 – Maio (quinta). [1990]

Tenho discutido o meu tanto com o meu antigo aluno Pedro Viegas, hoje professor universitário, sobre o seu Kant e a arte. E a coisa começou com o facto de eu julgar ser meu o conceito de «sentimento estético» que ele me disse ser já kantiano. Li há muitos anos a Crítica do juízo («Julgamento») e não me lembro de encontrar tal identidade. Refolheei o livro à pressa e permaneci na minha convicção. Gostaria um dia de dissertar sobre o problema, até para preencher o meu desemprego (e desistência) literário. Estou saturado da literatura e a filosofia volta a interessar-me vivamente. Dou aqui um resumo do que desejaria expor. Mas a exposição de «ideias» também não me entusiasma. A menos que elas venham embebidas de emoção. Kant deu-nos nas três Críticas uma formalização das suas matérias, ou seja a estrutura apriorística delas. Onde isso é mais evidente é, como se pressupõe, na análise dos juízos mentais com a fundamentação no pressuposto espaço / / tempo e a determinante última dos juízos sintéticos a priori. Não é possível ou imaginável que qualquer ser pensante, exista ele onde existir, possa realizar-se como pensamento sem a necessidade que obriga o nosso próprio pensar. A mesma formalização encontramos na sua Ética (razão prática) para lá de qualquer realidade empírica da sua moral. Quando Kant resvala para uma zona empírica, diz disparates ou injustificabilidades. O mesmo quanto ao Juízo (Julgamento), que ele entende situar-se entre a razão pura e a prática, quando a par (abaixo) da formalização apriorística, desce ao empirismo e diz tolices como a de valorizar o desenho contra a simples «agradabilidade» da cor. O que Kant sempre procurou foi a formalização do apriorismo ou limite máximo superior em que tudo se resolve. E aí o absoluto do gosto (ou se quisermos, de sentimento estético, que não é a expressão por ele usada assim mesmo, porque fala em sentimento de gosto como se admite seja o mesmo, já que de estética se trata), daí a universalidade desse juízo do gosto, uma vez que é impossível a cada um de nós imaginarmo-nos na pessoa dos que têm um gosto diferente, embora o conceba, e isto porque um gosto, na adesão da sensibilidade tem de ser concebido como universal porque não pode ser outra coisa. Como posso eu não sentir que uma mulher (ou obra de arte) é bela se eu a sinto assim? Como sentir então que outros a não sintam como eu, se eu não posso sair do que sinto? Kant distingue um juízo de gosto ou agradabilidade (que admite seja concebido como relativo) de um juízo estético (que se exige seja universal). Mas não se vê porque se aceite seja relativo um juízo sobre um motivo de agradabilidade e se exija (admitindo que outros discordem do nosso julgar) seja necessário e universal um juízo de gosto estético. Um gosto é universal e absoluto porque é o meu e eu não posso sair de mim. Nem tem sentido que eu ache bela uma obra, se eu não admitir isso como absoluto e universal. Mas posso saber e verificar que outros não sintam como eu. Nem para esses tais as coisas se passam da mesma maneira. Ora bem, o meu «sentimento estético» é anterior a tudo isso. Se por hipótese admitíssemos que jamais tinha sido realizada uma obra de arte, nem por isso o sentimento estético deixaria de existir. Diremos então que quando acaba o meu «sentimento estético» na sua indeterminação é que começa toda a teoria kantiana. Aliás, o sentimento estético não é um privilégio do homem porque por exemplo «o gato que brinca na rua» do Pessoa já o conhece na vertente do «jogo» que é para Schiller o fundamento da arte. Kant reflecte sobre a arte, eu sinto-a fundamentada, nesse «sentimento estético». Um Heidegger está assim mais próximo de mim – ou seja, eu dele – do que Kant. Heidegger pressupõe o mistério donde a obra vem e que nos revela. Assim os dois são interdependentes entre si. Porque o mistério fundamenta a arte, mas sem ela não o saberíamos, ou seja não saberíamos o que é a arte. De facto sem a obra eu não apreenderia o mistério. Mas ele pode existir e pressentir-se sem a obra. E é o que acontece a toda a gente em mil situações em que esse mistério se anuncia: o lume, o mar, o céu nocturno, o erguer da lua, etc. Mas é o animal que nos prova a apetência à obra de arte como no gato que brinca [1]. Há portanto em nós esse sentimento estético, que é o apelo à obra, e há a obra que é a sua concretização. Kant disserta sobre o que a obra lhe propõe. Eu penso no que a antecede. Este sentimento estético, aliás, tem que ver para mim com a revelação da verdade, ou seja a base fundamental da nossa relação com o Mundo, que é sempre uma relação «afectiva». A alêtheia de Heidegger (dos gregos) é no fundo um pouco isso, (mas haveria que distinguir e não tenho tempo nem disposição) porque é a aparição da oculta verdade que se opera na nossa inteira disponibilidade ou seja a nossa liberdade. A verdade aparece, desvenda-se ao nosso sentir originário e livre, na dimensão portanto do «sentimento estético». Donde vem essa disponibilidade? Que é que a determina ou fundamenta? Justamente o que tenho designado por «equilíbrio interno», gerado (e mudado muitas vezes) por mil factores que vão desde o sangue que nos deram aos encontros de pessoas, livros, etc., aos acidentes casuais, etc. Esse equilíbrio interno identifica-se com a pessoa que somos, com o nosso ser, ou seja com o incognoscível e indeterminável da nossa liberdade – que se identifica com esse o nosso ser.
E eis por agora. Mas tudo isto teria de desdobrar-se em texto muito mais longo.
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       Lúcio vai festejar o fim do curso com os seus colegas. E trouxe-nos várias fitas soltas com as saudações dos amigos como nós em Coimbra – mas com as fitas na pasta… E dessas fitas reservou uma para a Gi e o Cô. A Gi ainda não escreveu a sua mensagem. Eu escrevi: «Lúcio, tiraste enfim o curso da escola, vais tirar agora o curso da vida. Vê se não chumbas. O Cô». Mas fiquei mudo de choro na alma.


[1] Ver outros motivos da radicação da arte no animal em Qu’est-ce que la Philosophie?, p. 174, de Gilles Deleuze e Felix Guattari

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