terça-feira, 14 de maio de 2013

14 – Maio (segunda). [1990]

Ontem antes de jantar voltei a ter uma hemorragia nasal. A Regina, já instruída da experiência de há meses, meteu-me na narina prevaricadora um tampão com água oxigenada. E realmente a coisa travou mais cedo. Mas mesmo assim foi um espectáculo de sangueira, a cara e as mãos inundadas de sangue que esparrinhou também para a sanita e paredes da casa de banho. Por fim tudo serenou, menos o nosso estado de excitação nervosa. Telefonei ao António Magalhães que me levou da outra vez ao hospital para um jovem médico me cauterizar a veia que se rompeu. E isto para a hipótese de nova cauterização. Não valia a pela. Fosse tapando os buracos a haver com algodão e água oxigenada. De resto, a veia patifória devia ser outra. Há muitas no recanto da venta para se irem rendendo umas às outras. E se houver grandes desmandos, aplica-se-lhes então o processo inquisitorial. Sábado, mas não sei se falei disso, reparei que tinha o pulso com uma tresloucada arritmia. Depois reentrou na ordem. A ver se o Nogueira da Costa me passa hoje uma vista de olhos. E é isto. Agora vou é ver o que é que ainda funciona em mim para ter para esse órgão uma palavra de gratidão. Que sacana de corpo desde a infância até à morte.
*
Aí está. Fui às livrarias à procura de um livro e um pouco também para tomar o peso às pernas. Pesavam arrobas. E foi só hora e meia de experiência. A Regina tem uma explicação fácil para a desgraça – é que ando pouco e devia portanto andar mais. Mas se andasse muito com elas, tinha de me sentar no chão para as não trazer ao colo. Não havia o livro mas folheei os que havia e me não interessavam. Também tinha em mira mandar fazer cartões de visita na Emílio Braga. E levava um modelo de há anos que me convinha. É daqueles que têm o nome em relevo e são mais próprios de quem tem personalidade. Custavam uma fortuna e mandei a personalidade para o inferno. Encomendei portanto outros, mais próprios do proletariado. Mesmo assim, ser hoje proletário está uma carestia. Mas acabou-se, fiz um aperto na bolsa e espremi uma conta calada. Silêncio portanto sobre ela. De todo o modo, posso agora ser mais sociável e cumprimentar quem me cumprimenta. Curioso é que os livros são todos os dias aos montes. Edições e reedições e reedições de reedições. Quem disse que em Portugal há analfabetismo? Só se os livros se compram ao metro para adorno cultural. Mas o que mais me aflige é pegar num livro estrangeiro ou aborígene e atirar logo com ele, atacado de tédio. Como é que se pode ler um romance começado por exemplo por «Eram sete horas quando me bateram à porta. Levantei-me e fui abrir. Era um sujeito de meia-idade, vestido de escuro e que me perguntou se não era ali que», Ou: «A cidade estendia-se à beira-mar, com o seu casario que». Ou: «Um dia, pela tarde, o comboio chegou mais tarde do que». Etc. etc. Sou eu que estou a inventar estes começos para não dar «pistas», como se diz, a quem me ler. Mas se invento estes, os não inventados são parecidos. Espantoso. Com perdão de Valéry, quando a marquesa chega às cinco, é uma festa. Porque enfim sempre é uma marquesa e a aristocracia está ainda cheia de possibilidades. Mas o que se lê é pior. Como é que se pode ter prazer na leitura de um livro em cujas frases se não passa nada? Como é que ainda se lê disto, fora da pressão de uma insónia? Como é que pode haver deleite na leitura de um prosaísmo ofensivo? Como é que se podem ainda suportar historietas para atrasados mentais? Como é que se podem escrever páginas e páginas a dizer que fulano se sentou, ou poisou o chapéu no bengaleiro ou olhou as horas no relógio ou envergou a gabardina, abriu a porta, fechou-se à chave e desceu as escadas para ir comprar tabaco? Como é que se têm de ler 300 páginas para se lhe espremer uma que se lia em três minutos? Como é que há tanta gente que adora desvairadamente ser imbecil?
E foi fazendo estas considerações que larguei toda a livralhada e carreguei apenas com as pernas às costas para as trazer de novo ao descanso da casa. E agora que já cá estão, vou sentá-las no sofá e dar-lhes de prémio um cigarro.

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