sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O NATAL DO DR. CROSBY (5 e último)

(Do Diário dum expatriado)

(Dia de Natal)

Agora sim, agora é que vale a pena continuar este Diário. – Ontem fomos jantar com a família da Betsy. A pretexto de fadiga, voltámos cedo para casa, resolvidos a dormir como dois justos, enquanto a Virgem sofre as suas bentas dores. Como dois condenados é que eu devia dizer.
Chegados à nossa rua, o sossego é completo, dir-se-ia que estamos fora do mundo; o seminário, todo escuro, dorme no seu leito de alvura. Só a igreja, lá adiante, tem luz: provavelmente para a Missa do Galo. Perto já de casa, noto que a luz jorra através das cortinas das janelas do vizinho. No silêncio fatigado em que a neve parece forrar o mundo (nevou todo o dia), só desta casa sai uma trepidação de música, de vozes, de risadas. Festa de arromba. O meu primeiro impulso é não entrar. Para que diabo viemos nós tão cedo! Que noite de insónia rancorosa nos espera, com este inferno debaixo dos pés a envenenar-nos a paciência! Temos até de madrugada. «Disparate!», diz a Betsy. «Que lhe importa a você que eles façam música ou barulho, ou estejam quietos? Feche os ouvidos da consciência e durma!» Olho-a quase irritado com tamanho optimismo ou bom senso.
Dentro de casa, percebemos que o cume do escarcéu é por baixo do quarto onde dormimos: então, laboriosamente, mudamos o divã para a sala da frente e instalamo-lo o mais perto possível das janelas, ou seja, tão longe quanto podemos do foco do festim. Acendemos um bonito lume na grelha da chaminé, a casa fica confortável e quente. Muito antes da meia-noite estamos deitados, e eu leio ou fo esforços para ler um livro: na verdade pouco mais faço do que seguir mentalmente, com raiva e maldições, o que vai lá em baixo: batucada, correrias, brados roucos, tinir de louças e vidros. Um autêntico night-club do Village! Tinha razão a Swissabelle quando há dias nos segredou que a casa do professor tem a reputação dum clube de «imorais».
Como de costume, a Betsy não tarda a adormecer serenamente. Como eu lhe invejo os nervos delicados e tão rijos. Mas pouco a pouco lá consigo acalmar também. A verdade é que a gente se habitua a muita coisa, e só quando se rebela e protesta, quando tem uma conflito de consciência ou vontade, e luta interiormente, é que sofre: por isso nos ensinaram a resignação. (Mas uma coisa é sofrer pelo que se sonha, um ideal, e se espera alcançar, e outra é sofrer para que os outros gozem à nossa custa.) Que hei-de eu fazer? Ponho-me a imaginar que estou lá em baixo, a «gozar» na companhia dos vizinhos, do que Deus me livre. bem depois de ouvir tocar o sino para a missa da meia-noite, apago a luz e adormeço também, angelicamente embalado pelo temporal que sacode a casa até aos alicerces.
E nisto desperto, alarmado, a um ruído que vem de fora, da rua, e destoa do rumor fretico em que adormeci. Na lareira o fogo extingue-se, só brasas vermelhas na penumbra. Fico a escutar com o coração acelerado. Alguém bate com força na porta gradeada dos vizinhos, debaixo da escadaria. Calou-se a música, não há um rumor. Uma campainha trepida demoradamente algures, premida por mão impaciente. Depois a porta bate nos engonços como queixadas de ferro, e uma voz de homem, colérica e imperativa, brada:
«Abram esta porta! Abram esta porta!»
A Betsy acordou, e ergue-se num cotovelo a escutar, de olhos arregalados. Murmuro: «Há complicação. É à porta do Crosby.» Saltamos do divã e, embrulhados em cobertores, de joelhos no parquê, ficamos a espreitar para fora, por baixo do estore corrido. Ninguém nos pode ver. Em frente da casa, com a portinhola escancarada e uma roda em cima do passeio, está um roadster claro: percebo agora que foi a travagem brusca, o guinchar dos pneus que me despertaram. Uma curva apertada deixou sulcos profundos na neve do pavimento, grossa de umas quatro polegadas. Os vizinhos apagaram as luzes. Mas enxergo perfeitamente o vulto do homem que abana com raiva a porta de grade e continua a bradar: «Abram esta porta! Jimmy, abre a porta ao teu pai!» De dentro, uma voz mansa responde, tenta talvez apaziguá-lo. «É o Gaylord que fala!», diz a Betsy com um hálito de excitação no meu ouvido. Aperto-lhe a mão sem responder. Aquele homem é então o pai do professor... Vamos ter corpo de delito! «Mas abra a porta!», grita o velho. «Isto é uma vergonha, como se atreve ele a recusar entrada ao pai na noite de Natal?... Diga-lhe que venha aqui falar comigo. Jimmy! JIMMY!...» Repete-se o murmúrio abafado, o velho sacode a porta com violência, cospe insultos para dentro. Já não lhe respondem. Ouço bater a porta interior, e segue-se um silêncio.
Então, o sujeito recua até junto da grade, cambaleando um pouco, e fica a olhar a fachada do prédio. À luz do lampião vizinho e no fulgor da neve posso vê-lo à vontade: é um homem de uns sessenta anos, robusto e sanguíneo, de meia estatura, com o cabelo todo de prata. De sobretudo claro, cachecol, e sem chapéu, tem o ar de quem saiu agora mesmo duma soirée. Percebo que procura descobrir no prédio alguém a quem possa falar, pedir que lhe abra a porta. Tenso, lembra um mastim ao qual a presa escapou. Da sombra do prédio surge uma personagem até agora invisível: um rapaz de gabardine, alto, delgado e pálido, em cabelo, aproxima-se do velho e murmura: «Daddy, daddy, vamos embora pelo amor de Deus!» O velho repele-o com dureza, e o rapaz vai-se encostar à portinhola aberta do carro. Que contraste entre ele e o pai apopléctico! Adivinho neste um autocrata.
O velho parece ter de súbito uma ideia: sobe a correr a escadaria, e daí a momentos um rondó de campainhadas faz vibrar a casa de alto a baixo: mas ninguém abre. Uns estão fora, outros dormem, ou fazem como nós, espreitam esta cena de Natividade malograda. O velho rosna palavras ininteligíveis, depois grita: «Abram esta porta, eu sou o Dr. Crosby!» Ninguém faz caso. Ele volta a descer a escada, arrebatado, transpõe o passeio dando um empurrão ao rapaz, que tenta detê-lo, corre para o meio da rua, pára, e no silêncio branco que forra a noite põe-se a gritar:
«Ninguém se atreve a aparecer, a abrir uma porta ou uma janela... Mas eu sei que estão todos a escutar por detrás das cortinas! Pois então ouçam: eu sou o pai desse miserável que mora ali. É noite de Natal, vim para ver o meu filho, sou um pai que quer ver o seu filho numa noite de festa, e ele não me deixa entrar em casa. Não abre a porta ao pai! Desde que a mãe morreu, há três anos, nenhum dos meus filhos me tornou a visitar! Mas não é só isso... Este meu filho é a vergonha da minha cara! É um pederasta. Um pe-de-ras-ta! Esta casa é um clube de invertidos e travestis! e ele não quer que o pai veja... Quero que todos saibam! Os meus filhos são uma corja de imorais...»
O velho, rubro e sufocado de furor, cambaleia na neve, cala-se um momento, fica especado à espera de resposta. Mas só os torrões de neve que tombam surdamente dos beirais parecem responder-lhe. A Betsy aperta-me o braço com terror, vergonha ou piedade. Vermelho, desenfreado, com os cabelos de prata soltos na noite fria, o velho arremete de novo contra o prédio como se viesse demoli-lo. O seu vigor assombra. À passagem dele, o rapaz, que chora com a cabeça apoiada no carro, diz numa voz de súplica: «Daddy, por favor, vamos embora... Daddy!» O velho vira-se e atira-lhe à cara um vago murro de bêbedo, que o não atinge. Depois agarra-o como se quisesse forçá-lo a entrar no automóvel.
Alguma coisa, um rumor o interrompe: são três homens que se aproximam, três vagabundos mal enroupados que vêm do lado das docas, de mãos nos bolsos, e param a ver a cena. O Dr. Crosby larga o filho, aborda-os resolutamente e põe-se a falar em voz baixa com eles, agarrando-os pelas lapelas: não ouço o que diz, mas pelos seus gestos enérgicos percebo que lhes conta e explica o que se passa na casa. Dá-lhes instruções, talvez. Mete a mão num bolso e começa a distribuir dinheiro aos noctívagos, que o aceitam com sofreguio. No fim recua dois passos e ouço-o dizer: «Fiquem aqui! Desta casa não sai ninguém!» Os três bums assentem e postam-se em frente da grade. O velho empurra o filho para dentro do carro, corre em volta a tomar assento ao volante, põe o motor em marcha com fragor, e parte, derrapando e patinando na neve, perigosamente. O tapete branco da rua fica todo sulcado e revolvido. O silêncio fecha-se. A Betsy murmura: «Foi chamar a polícia...» E eu respondo: «Com que direito é que estes mariolas me guardam a porta?» Sinto vontade de ir lá fora, agora até era capaz de armar em defensor do vizinho. A Betsy aperta-me mais o braço, retém-me.
Os três noctívagos olham a casa e parlamentam entre si no silêncio da rua. Um deles aproxima-se da cancela, hesita, depois entra. Ouço ranger uma fechadura, a porta de grades guincha nos gonzos, e o Gaylord, em cabelo e sem casaco, sai e põe-se a falar com eles. Todos acenam enérgicas afirmativas à explicação que ele lhes dá: e de novo estendem as mãos às notas. O Gaylord desaparece, e eles vão postar-se a distância, separados, como vedetas. Percebo tudo. Dentro de casa, onde há pouco era um silêncio de túmulo, vai agora uma agitação de preparativos: ouço correr, batem portas, há apelos sussurrados. «Vão sair por cima, pela escada – murmura a Betsy. – Para que ninguém diga que os viu sair cá de baixo!» Com efeito, não tarda que ouçamos um tropel de passos abafados na escada interior, ao fundo do hall, e depois nos mosaicos. A porta da frente abre-se, e um a um, cautelosamente, olhando para a esquerda e para a direita, os convidados do meu vizinho descem a escadaria, detêm-se um instante em frente da grade, depois, com um breve adeus, afastam-se rapidamente, dispersam para leste e oeste, carregando embrulhos... Homens e mulheres (sei eu lá se são mulheres?), alguns aos pares, outros em grupos, não tenho tempo de contá-los, talvez dezoito, vinte pessoas. «Os embrulhos são as roupas dos travestis!», explica a Betsy, rindo. Tudo isto durou instantes. A porta volta a fechar-se, a luz acende-se em baixo, e o Gaylord reaparece, faz um sinal aos bums, que se aproximam: dá-lhes uma garrafa, genebra ou whisky, com certeza. Boas-festas, Natal feliz! Despede-os, eles agradecem com efusão, vão-se embora. A porta range de novo, gira a chave na fechadura, a porta de dentro bate, correm ferrolhos – a paz reina enfim na rua deserta! Só a neve guarda os sinais do incidente.
«Achas que se acabou o show?», pergunto à Betsy. «Qual! O velho não tarda aí com a polícia... Vai começar o segundo acto!» Agarra-me num frenesim de excitação, ansiosa por saber no que a coisa vai dar. «Fica aqui à espreita enquanto eu vou fazer café», digo-lhe. A casa esfriou – passa das duas da manhã – e isto está a pedir um reconforto. Corro à cozinha, e mal acabo de pôr a água em cima do gás, ouço um silvo de cobra – é o sinal da Betsy! Volto ao nosso posto de observação a tempo de ver o Dr. Crosby travar o roadster com um solavanco tremendo em frente da cancela. Salta a correr, seguido do filho vagaroso. A rua deserta, o velho olha em volta: «Onde estão esses vadios?» Furioso, de punhos cerrados: «Não há um polícia! A polícia só aparece quando não é precisa!» Lança às fachadas um olhar desvairado, corre para a porta, rosnando palavras incoerentes, e desata de novo a sacudir a grade: «Abre esta porta, canalha, maricas, pederasta! Abre a porta ao teu pai!» Capaz de rebentar com os ferros! A minha vontade era abrir a janela, dizer alguma coisa... «Nem penses nisso!» Oh senhor, toda esta gente, a vizinhança a ouvir, e ninguém faz nada?
Nisto, reconheço a voz do meu vizinho, que grita lá de dentro, histérico:
«Vá-se embora, Dr. Crosby! Vá-se embora! Ou ainda se há-de arrepender!» Há uma ameaça parricida, enregelante, na voz do pederasta. «Abre a porta, miserável, degenerado!» O velho deixa a porta, e atira-se às janelas por baixo das nossas: ouço um estilhaçar de vidros. Através das grades, ele parte as vidraças todas a murro. Sinto-me empalidecer. A Betsy já treme, tem as mãos geladas, bate os pés de impaciência. «Meu Deus, isto vai acabar mal...» Dentro de casa há gritos agudos. O rapaz vem correndo da rua para agarrar o pai, detê-lo ou arrastá-lo consigo: o velho atira-o de costas contra a grade. Ouço a voz perdida do professor, em baixo: «Deixa-me! Deixa-me! Eu faço-o pagar! Larga-me...»
Pressinto tudo: o Gaylord tentando agarrar o amigo, que quer vir à janela para... E nisto ouço um estilhaçar de louça, o baque dum corpo, um ronco sufocado: «Anda, miserável, pederasta! Vem cá para fora, vem bater no teu pai!» – Travam luta através das grades! De fora, o rapaz voltou à carga, tenta prender os braços do pai, que se aferram às grades. «Daddy, daddy, veja o que faz!» Pelas sombras na neve vejo agora o que se passa. A Betsy torce as mãos de terror... Levanto a janela com um puxão e curvo-me para fora. O velho, com os braços enfiados pelas grades, sacode furiosamente alguém que está dentro da casa: ouço uma voz abafada, um estertor – deitou talvez as mãos ao pescoço do filho, e vai esganá-lo! Uma voz brada: «Socorro! Socorro!» O rapaz tenta desesperadamente arrancar o pai dali... Já me preparo para saltar da janela assim mesmo, quando vejo um braço que sai pelas grades agitando um objecto escuro. O velho solta um ronco, e recua cambaleando, amparado pelo filho. A Betsy puxa-me para dentro: «Fecha a janela, pelo amor de Deus!»
Ao fim da rua o berro duma sereia rasga o silêncio, depois outro e outro. Carros da polícia convergem de todos os lados, num smorzando de sereias. Dum instante para o outro, o passeio e o espaço em frente da casa ficaram cheios de polícia e de gente. (No seminário não há uma luz: tudo voltado para a Eternidade!) Os faróis enchem a rua de clarões e a neve de sombras alongadas. O Dr. Crosby ficou estendido, inanimado. Parece roxo, e de repente empalidece... Abrem-se as portas, os agentes entram na casa. São quase três horas, chega a ambulância. O interno faz um exame sumário do corpo, enquanto a polícia mantém a distância os curiosos (entre eles avisto, dissimulados, os três bums das docas, que voltaram). Levantam o corpo na padiola, a porta da ambulância bate, o filho mais novo, esquecido, soluça encostado ao gradeamento. E nisto vejo o Crosby sair de baixo, amparado no amigo, choroso, com o pescoço amarrado, arrastando a perna... E tenho pena dele. Bonito Natal nós vamos ter. Esta noite já não prego olho!
Sentados a tomar café, digo eu: «Tenho o pressentimento de que não vou conseguir fazer o meu trabalho sobre o Espinosa nesta casa. – Trabalho? Espinosa? Você vai ver, um dia destes vai tudo para a rua. Casa onde entre a polícia...»

( de Dezembro)

Afinal o velho escapou: ameaço de congestão e laceração do couro cabeludo. Quem ficou no Bellevue foi o meu vizinho, a tratar-se dum «ataque de nervos» e duma inexplicável lesão da traqueia (esganação, digo eu).
A Betsy tinha razão: recebemos hoje uma nota da agência de aluguéis: no fim de Janeiro vai tudo para a rua, começam obras grandes no prédio. E eu que estava aqui tão bem!
Até quando, meu Espinosa! 



José Rodrigues Miguéis 

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