sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

REGRESSO

Rio de Onor, 28 de Setembro [1946]


             REGRESSO

Bicho que nunca se ergueu,
Instinto desprevenido,
Digam que não, mas sou eu,
Aqui deitado e despido.

Sinto a vida como um seio
Que lateja de calor;
Como um ventre onde semeio
O meu sémen criador.

Ouço cantar as raízes,
E vejo seixos fechados
Reluzentes e felizes
Por serem acarinhados.

As linhas de água corrente
Passam pelas minhas veias.
Entre o meu corpo e a nascente
Não há distâncias alheias.

Cheira-me a terra a tutano,
Mastigo-a e sabe-me bem.
Animal, mas desumano,
Recebo inteiro o que vem.

Estou na origem do meu ser,
Primário como um Adão.
Que pena eu não me esquecer
De cantar esta emoção!

Miguel Torga, DIÁRIO IV, p. 12

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