segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Mia COUTO - PENSAGEIRO FREGUENTE (1)

Fintado por um verso

No meu bairro, o futebol era a grande celebração. Preparávamo-nos para esse momento, como os crentes se vestem para o dia santo. Aquele domingo era um tempo infinito. E o campo, aberto num descampado da Muchatazina, era um estádio maior que o mundo. O jogo ainda por começar e o coração no peito já cansado: não havia relógio onde coubessem aqueles noventa minutos.
Não era a sede de ganhar. Não quero parafrasear Pierre de Coubertin, mas o importante era estar lá, nesse jogo de infinitas representações que permite o futebol. De repente, o nosso lugar migrava e a nossa identidade transitava para mundos onde tudo era grande e brilhante. Esse era o segredo do atropelo no peito, desse vício que nos fazia fugir de casa, faltar à escola, e deixar a namorada à espera. Quando jogávamos deixávamos de ser nós. Deixávamos de ser. E éramos tudo, todos. Vivos e mortos se perfilavam no panteão dos que nunca perderam.
Na minha gloriosa equipa, eu era avançado de centro. Um eufemismo, talvez, designar-me desse modo. Porque eu apenas fintava. Nunca rematava. A minha alcunha em chissena já dizia dessa habilidade: eu era o «kiywa», o fintador. Um fintabolista, como chacoteavam outros. Faltava, porém, um nome para a minha inabilidade.
— Caraças, para ganhar é preciso marcar, pá! Esse gajo é um poeta. É o que ele é: um poeta.
Era Jujú Chuteirinho, o nosso mestre treinador. Talvez ele, o mister, tivesse razão. Talvez eu não fosse realmente um avançado. Talvez o meu terreno fosse realmente a poesia. Mas a beleza do futebol não está no golo. Como na arte do namoro: o fascínio está nos preparativos. O encanto está no que não pode ser traduzido nem em número nem em palavra. A partida de futebol é sempre mais que o resultado. O mais belo num jogo é o que não se converte em pontos de classificação, é aquilo que escapa ao relatador da rádio, são os suspiros e os silêncios, os olhares e os gestos mudos de quem joga dentro e fora das quatro linhas.
Voltemos a Chuteirinho. A frustração do treinador era, afinal, explicável: na Beira, minha cidade, os bairros eram territórios de fingido confronto. A guerra mundial era entre bairros da pequena urbe que desobedecia à própria lógica urbana. A Beira nasceu desobediente: eu mesmo nasci e cresci em zonas que tinham sido destinadas aos «asiáticos». E os futebóis se faziam de misturas que afrontavam as fronteiras raciais do momento. O Esturro era, nessa altura, o meu bairro, a minha tribo, a minha nação. Preparava-se o grande derby que opunha o Esturro à Ponta-Gea. O destino estava nas nossas mãos, melhor dizendo, nos nossos pés. Jujú Chuteirinho decidiu ensaiar em mim os seus melhores dotes psicológicos.
Naquela tarde, em véspera do jogo, Chuteirinho convocou-me. O seu semblante era sério, solene. Fez-me sentar no muro, frente à casa, enquanto manuseava um varapau como se fosse uma gigante lapiseira.
Estás a ver a pequena área?, perguntou, fazendo uns rabiscos na areia.
Os rabiscos se complicaram ilustrando, enquanto falava, a minha evolução caótica pelo relvado. Depois, voltou a reforçar o traço num pequeno quadrado:
— Faz de conta que a pequena área é uma miúda. Sim, uma miúda, uma gaja. É preciso descascá-la, acariciá-la, beijá-la. Mas, depois… depois…
— Sim, depois?, inquiri eu, meio adormecido pelo riscar da madeira na areia.
Depois…, depois pergunto eu: depois, no momento decisivo, é preciso o quê?
Era óbvia a alusão do mestre Jujú, o melhor treinador de todos os tempos. Para mim, porém, a metáfora tinha-me escapado. O amor não tem «depois». O amor é o tempo inteiro consumindo-se no instante. E vieram-me à cabeça as meninas que, nesses meus quinze anos, se acumulavam à porta dos mais platónicos sonhos. E veio a Alda, a Guida, a Isabel, a Martinha, a Leila, a Paula, a Mónica e mais do que todas, a Laura, a mais recente. E pensei, de repente: «Eu, no amor, só finto. Não remato.» Foi isso que pensei, naquele momento.
Jujú Chuteirinho não reparou no meu olhar distante, perdido em outros campeonatos. E continuou explanando as apuradas tácticas: a bola em rosca nos livres directos, a bola em arco nos cantos, a bola em bala nos penáltis. Se eu vivia o futebol em poesia, Chuteirinho era exímio prosador. O idioma dele era uma língua capinando relvados: os pontapés de «bicicleta», os «carrinhos», os «frangos», os «chapéus», a «força anímica», o «jogo jogado». Mas eu não o escutava. Dentro de mim soava apenas o conflito entre mim e a minha idade.
No dia seguinte, já em pleno estádio, envergando a farda da selecção mais famosa do universo, passei o olhar pela assistência. Imagino hoje, a vidas de distância, como se sente Cristiano Ronaldo perante o imenso clamor da multidão. No meu estádio, a multidão era a humanidade inteira. Principalmente, reparei nas miúdas, nos lugares da frente, espremendo-se para não perderem pitada do jogo. De repente, a realidade se sobrepôs ao devaneio e notei, entre a assistência: lá estavam elas, as miúdas. Verdadeiras, de corpo, alma e força anímica. Ali estavam elas, em distinta moldura, atrapalhando-me as rótulas. E estava, sobretudo, Laura, a mais bela de todas. Os meus olhos, por sabedoria instintiva, pousaram no treinador. O sorriso matreiro no rosto de Chuteirinho confirmava: era um plano arquitectado por ele. Frente ao friso das minhas paixões eu não tinha senão que marcar golos. Sem golos, ninguém ganha. Nesse jogo, uma vez mais, não marquei. Para tragédia do «mister», não ganhámos. Não sei porque escrevo «nós», no plural. Porque, no final, acabei vencendo. Não foi no jogo. Nem nos momentos que se seguiram. Foi mais tarde, quando tudo parece ter o sabor do irreversível. Já entenderão.
No dia seguinte, Laura me visitou. A voz dela era tão cheia de vozes, que por longos anos ainda a recordei apenas por essa imaterial presença. E ela me perguntou:
— Estás triste por causa do jogo?
— Estou triste por causa de mim.
Laura era mais velha, sabia de coisas que eu apenas suspeitava. Desembrulhou um papel garatujado por sua própria letra.
É um poema, sussurrou ela.
— É para mim?, perguntei.
E ela respondeu: Não, é para o Ademir. O nome do outro me atingiu como uma fisgada. Como se, de súbito, eu tivesse sido despromovido de avançado, interdito como jogador. Guardei o papel no bolso, amarrotado com fúria sem que ela percebesse. Mais do que a derrota me doía aquela atenção de Laura por um outro. E fui, dali para a minha solidão. Laura ainda ligou umas tantas vezes. Recusei atender. Depois, o telefone morreu.
Nunca li o tal poema. Voltei a encontrar Laura, anos depois, já ela sofria do peso de ser mãe de mãe. Não a reconheci. Apenas aquela voz de riachinho fluindo, me levou de regresso às fontes. Foi ela que me recordou o quanto me procurou após a última visita. Perguntei-lhe por Ademir. Que Ademir?, estranhou. Nunca conheci nenhum Ademir. A resposta era convincente, de tal modo sincera que desviei o assunto para outras ausências e deslembranças. Já regressado a casa, procurei o papel velho, ainda amarrotado. Laura tinha transcrito até o nome do autor. Era um verso de João Cabral Melo Neto e tinha por título: «Ademir da Guia». E dizia assim:
Ademir impõe com seu jogo / o ritmo do chumbo (e o peso), / da lesma, da câmara lenta, / do homem dentro do pesadelo. // Ritmo líquido se infiltrando / no adversário, grosso, de dentro, / impondo-lhe o que ele deseja, // mandando nele, apodrecendo-o / Ritmo morno, de andar na areia, / de água doente de alagados, / entorpecendo e então atando / o mais irrequieto adversário.
Atado a mim mesmo fiquei eu, depois de esclarecer o mistério do papelinho de Laura. Afinal, Ademir não era nenhum «outro». Bem vistas as contas, Ademir era eu mesmo, enredado na pequena área que é o momento da felicidade.

Voltei a guardar o velho papel, vencendo um triste sorriso. Uma vez mais, a poesia me tinha fintado. Pode haver um mister para as artes da bola. Mas o único treinador para as lides da Vida somos nós mesmos.

(Maio de 2010) 

Sem comentários:

Enviar um comentário