quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Uma manhã perfeita...

Nazaré, 20 de Abril [1947] — Uma manhã perfeita, de um bucolismo quase rural. O mar parece um lameiro de erva de lima. Por ele a cabo, as lanchas lembram rezes a pastar. E na praia, as mulheres, vestidas de negro, ou dormitam acocoradas como galinhas chocas, ou cacarejam a espezinhar a lisura da areia.
De repente, um barco é apanhado de través. De um golpe, o mar leva a rede, os remos, e põe uma dúzia de homens à sua mercê, impotentes e acobardados como crianças.
Ergue-se um clamor. À gárrula dobadoira de há pouco é agora uma estática maceração aos gritos. Mãos convulsas arrancam madeixas de cabelos, arranham os peitos, levantam-se em protesto contra Deus, em gestos de dor secular.
A nado e aos tombos, numa espécie de benevolência do mar que os empurra, os homens chegam finalmente à praia. À rede, à tona das vagas, esfarrapada, perdida, é uma renda de noivado desfeito.
Volta a serenidade e a paz. Foi como se o mar quisesse apenas quebrar por um instante a sua monótona existência.


Miguel Torga, Diário IV, p. 32 

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