segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O NATAL DO DR. CROSBY (1)

(Do Diário dum expatriado)

de Novembro)

A casa agradou-nos logo – velha, duas salas amplas, tectos altos, chaminés antigas, e a varanda toda envidraçada para o quintal, um autêntico solário onde vai ser bom trabalhar. A rua, a dois passos das docas, entronca à esquerda na West Street: tabernas, lojas soturnas, hospedarias manhosas, negros armazéns, cheiro de alcatrão, fumaça de navios, sereias, manobras de comboios, ranger de guindastes, o enxurro incessante de gente e de mercadorias. De noite um silêncio vazio, de cansaço, mascarado de paz campestre. Lá para o outro lado, a leste, tudo se transfigura: casas de classe média, sobretudo de tijolo, comércio, bares, cinemas de frequência mista. Já me tem sucedido passar ali de noite e ser abordado por homens de má catadura e bom corpo, duma arrogância pouco tranquilizadora, que me pedem um «níquel» para um café ou o subway.
A meio deste contraste a leste e oeste, a ilha verde e vermelha do seminário presbiteriano ocupa todo o «bloco» em frente: relvados de veludo, grandes árvores frondosas, agora nuas, a graça austera do gótico inglês de imitação, na pedra e tijolo com a patine de Nova Iorque – grande massa de edifícios harmoniosos na sua irregularidade estudadamente livre, dominada por uma alta torre severa, de universidade rural. Em pleno caroço de Manhattan, dá-me a grata impressão de estar do outro lado. (Queremos sempre estar do «outro lado»...) A igreja volta-se para a Nona Avenida, a leste. Alheio à fé, agradam-me estas manchas de silêncio e verdura, de recolhimento e gravidade arquitectónica em pleno tumulto da cidade cancerosa. Vidas alheias, ensimesmadas, todas volvidas para o grande vazio da Eternidade. Moram por aqui professores, artistas, leitores de livros, gente pacata e progressista que leva uma vida espartana. Longe do luxo e do glamour. Tudo isto me atrai no sítio. Foi o Nathan que nos deu o endereço. E a renda em conta, um achado. Até parece mentira, bom de mais. A Betsy bate palmas de contente, dança uns compassos de swing no parquê moreno. Resolvemos ficar. Mudança depois de amanhã.

de Novembro)

Com a meia dúzia dos trastes modestos, a casa, seminua, fica enorme. Um estúdio, o que eu precisava. Como vou ficar aqui metido quase todo o dia, tenho bem por onde esticar as pernas. Blusa de trabalho, alpergatas, dum lado a mesa, do outro, na varanda, o cavalete de amador. O parquê estala por todas as costuras. Na lareira da sala da frente pode-se acender um bom lume: o aquecimento não presta para nada. A Mina, que hoje cá esteve, dise logo: «Vocês até aqui podem dar festas, reuniões!»
Ambas as salas têm porta para o vestíbulo, chão de losangos de mármore preto e branco; a entrada geral do prédio faz-se pela porta ao alto duma escadaria. Isto chama-se por cá o «primeiro andar»; o andar inferior, rés-do-chão, um pé abaixo do nível da rua, tem duas janelas gradeadas para o relvado exíguo da frente, e uma porta de ferro, privativa, oculta sob a escadaria. Em frente, uma balaustrada, também de ferro fundido, separa o relvado do passeio. Por cima de nós, no segundo, vive um advogado celibatário; no terceiro não sabemos quem vive; e no quarto, três janelinhas rentes à cimalha, quase uma mansarda, mora um «casal de artistas». Foi o que nos disse o janitor. Como tantas casas de Nova Iorque, esta foi dantes moradia de uma só família desafogada: é hoje um prédio de rendimento, com uns cinco inquilinos. Mas conserva a atmosfera de intimidade, que o hall acentua, com o seu espelho embaciado por cima da consola onde o carteiro deposita todas as manhãs a correspondência dos moradores.
O cubículo que nos serve de sala de banho (sem banheira) tem outra portinha para o fundo do vestíbulo, onde descubro uma escada estreita que leva ao andar térreo. (Os vizinhos de baixo têm, pois, duas entradas.) A cozinha é na varanda, ao canto, em frente da porta, com uma escadinha de madeira que dá para o quintal, só ervas à toa e cordas para secar a roupa. Já sonho fazer daquilo uma horta! O conforto não é grande, mas sem ele também se vive. O importante é trabalhar.
Arrumados os papéis, meia dúzia de livros nas prateleiras, os quadrinhos modestos nas paredes imensas, o telefone – sinto que as coisas me vão correr em cima de esferas. Já não é sem tempo. Sinto-me ansioso de meter mãos à obra. 


José Rodrigues Miguéis

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