Sobre Maria João Pires
Maria João Pires
não teve muita sorte com o país em que nasceu. Sessenta anos de carreira (e que
extraordinária carreira a sua) justificariam uma homenagem de âmbito nacional
capaz de expressar a nossa gratidão por pisarmos o mesmo chão e respirarmos o
mesmo ar. Não será assim, pelos vistos, ainda que não lhe venham a faltar na
terra portuguesa outras manifestações de admiração e respeito. Foi em casa de
uns amigos que a ouvi pela primeira vez, quando ela não passava de uma
adolescente que, com o seu frágil corpo, mal parecia haver saído da infância, e
que me fez temer se os braços e as mãos lhe chegariam para enfrentar-se ao
gigantesco teclado. O piano familiar, vertical, talvez não estivesse em
perfeito estado de afinação, mas as primeiras notas saltaram límpidas,
cristalinas, dando-me a sensação, não de serem a mera consequência do choque
dos martelos com as cordas, mas de haverem brotado directamente dos dedos da
própria pianista. Foi o meu baptismo na arte de Maria
João Pires. Depois, ao longo dos anos, sempre que ela, já viajante emérita,
aparecia por Lisboa a dar os seus recitais, eu lá estava, rogando às potestades
celestes que a protegessem do mau-olhado, de um simples sopro de ar que a
perturbasse. Talvez por efeito das minhas petições e do crédito que tenho no
céu, todos os concertos e recitais de Maria João Pires a que assisti chegaram
felizmente ao seu termo. Desta vez, por razões de distância e também de saúde,
não poderei estar presente, dar palmas e beijar as suas mãos tão cheias de
música, de humanidade, de beleza. Por tudo o que me fez ouvir e sentir, Maria
João, obrigado.
José Saramago, O CADERNO
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