«Ora adeus!», dizia-me o engenheiro meu
amigo. «A civilização? o progresso? um mito! um bluff!... O ideal, meu caro, é regressar à vida primitiva,
despreocupada e simples das cavernas!»
Ergui-me de salto, num protesto veemente
contra a boutade, mais do que paradoxal
num homem que não só colabora permanentemente na complicação técnica das formas
actuais do progresso, corno vive à custa deste. Na verdade, quem me demonstra
todos os dias, copiosamente, que o rendimento da produção aumentará de forma
prodigiosa no dia em que o trabalho obedecer a leis científicas, a uma
metodização rigorosa, não tem o direito de sustentar que a minha felicidade
está na razão inversa do progresso das técnicas.
Sim, protestei. Repugna-me pensar que a
débil compleição e a miopia deste amigo lhe não permitiriam resistir a vinte
dias de boa vida troglodítica. Bendita civilização, feliz progresso, que deixas
aos fracos, aos doentes, aos mutilados, a alegria de se aquecer ao sol, de
pensar, de sentir, e de amar! A todas as perguntas angustiosas sobre o problema
e origem da existência e dos seus fins – Porque existimos nós? Vale a pena
viver? Porque lutamos?, etc. – uma só resposta satisfaz: «Lutamos para viver, e
vivemos para multiplicar a vida.» Instintivamente, prosseguimos o destino que a
natureza (ou a Bíblia?) nos ditou – «Crescei e multiplicai-vos,»
Mais forte e poderoso do que lodos os
obstáculos, dominando tudo, alimentando as formas mais subtis do nosso
pensamento, e os actos mais comezinhos da nossa existência, inspirando-nos a
inventiva que nos trouxe do Pamir ao canal de Panamá, obrigando-nos a afeiçoar
o primeiro barco e a descobrir os deites rejuvenescentes da glândula do macaco (*) – esse instinto de conservação e de
engrandecimento da espécie, esse orgulho animal de sermos e de espalharmos a
vida persistente, preside a toda a nossa actividade.
A experiência assegurou-nos que a
invenção, pondo a natureza ao serviço das nossas necessidades, realiza milagres
que valem, proporcionalmente, o da Criação. À medida que aprisionámos o fogo,
que aprendemos a dominar as feras, que descobrimos a orientação e a navegação,
que aplicámos os minerais, os animais e os vegetais à nossa defesa e à
manutenção da nossa bárbara família primitiva, mais gostoso nos ia sendo o pomo
do pecado.
O amor, menos feroz e mais tranquilo,
purificou-se lentamente: e os nossos pais antigos olharam com enlevo e
esperança os seios ásperos das filhas, que despertavam para o amor, para a
sofreguidão das bocas vindouras, num ambiente de calma e segurança. Proteger as
vidas futuras, eis o intuito que domina o homem, sem que ele mesmo o perceba.
Mas imaginamos nós, porventura, o que
era a vida nas cavernas? Escuridão, fumo, terror, silêncio defensivo? O homem
não arrisca um passo através da floresta sem abraçar angustiosamente a fêmea
que vem, entre a prole nua, dizer-lhe adeus à porta do abrigo, menos calma do
que a esposa de hoje pode dizê-lo ao marido que, solitário numa avioneta, vai
tentar a volta ao mundo. Por toda a parte a natureza impenetrável lhe estende,
então, a sua perigosa armadilha. As feras fulvas espreitam-lhe os passos.
Outros homens, mais inimigos do que irmãos, mal distintos dos monstros que
saltam de ramo em ramo e de rochedo em rochedo, surgem de outras cavernas
escondidas, armam-lhe esperas entre os arbustos para roubar-lhe as armas, as
peles, a vida, a mulher, e, quiçá, comer-lhe a tenra descendência.
A população de um continente inteiro não
chegaria então para povoar qualquer pequeno estado da moderna Europa. A
insegurança, o incêndio, a luta, os vendavais, as feras, as inundações, mil
implacáveis inimigos rodeiam o pobre ser cabeludo e espantado que nós fomos,
tornam-lhe amargas as horas de amor, fazem-no olhar com medo supersticioso a
morte que lhe arrebata as crias débeis.
Desde então até que o moderno pai de
família, percorrido à pressa o jornal da manhã e engolido o pequeno-almoço,
possa levar pela mão os meninos à escola, ou tome tranquilamente o carro que o
vai deixar à porta do seu banco, para recolher à tarde a uma casa donde nem o
senhorio o poderá expulsar – que longo caminho percorrido!
Ainda que chova, podes ir ao teatro
abrigado num impermeável; ou ficas em casa à noite, a ler o teu jornal, o teu
romance, com a certeza de que o mundo em volta de ti é uma coisa estável, onde
se ama e se trabalha, luta e goza, chora e ri, mas sob a protecção da ciência e
da lei.
Mas não te vou contar a história da
civilização, que daria um grande folhetim!
Louvado seja Marte, a própria guerra
progrediu, melhorou: são tão engenhosos, tão perfeitos os instrumentos de morte
destes nossos dias, que a percentagem das vítimas da guerra é hoje vinte ou
trinta vezes menor que no tempo de Ciro ou de Artaxerxes. Repara que a guerra,
no tempo das cavernas, é de família a família, e por isso de extermínio: vencer
ou morrer. Depois é de clã, de tribo, de cidade ou feudo. Ainda então ela é de
aniquilamento: quem não morre em combate é passado à espada, se velho; vendido
como escravo ou concubina, se homem válido ou mulher. E as cidades arrasadas,
incendiadas, apagadas muitas vezes da face da terra.
Compara-a, amigo, com a guerra moderna: que
sossego, que doce segurança! Enquanto os soldados se batem na frente, bebe-se e
dança-se nos cabarés, investiga-se nos laboratórios e nas bibliotecas, ama-se
em lugares discretos, pinta-se nos atelieres, discorre-se nas cátedras, ri-se
nas plateias, festejam-se aniversários natalícios, e os telescópios seguem
atentos a marcha irresistível dos astros… E até se fazem fortunas fabulosas!
Acabou-se a guerra? A Alemanha vencida recompõe-se a três anos da derrota.
Multiplicam-se as vidas, o amor, as invenções. Novas formas subtis criam-se
para gozo dos sentidos. As libras rolam, tinindo, sobre o mundo. Aviões
retalham o céu azul (ou de outra cor); anda-se de automóvel para cima, para os
lados, para baixo… (Para baixo da terra, sobretudo.)
Oh céus! Pensa agora na Idade Média,
tecida de guerras e lutas de extremo a extremo. Na desolação das planícies do
Danúbio à passagem dos Hunos, no terror da Sibéria sob as hostes bárbaras da
Mongólia, na tristeza despovoada das costas da França, que as incursões dos Normandos
ameaçavam.
Chegámos a esta coisa espantosa: a curar
a mordedura do cão com o pêlo do mesmo cão. Não são isso as vacinas? Em
laboratórios límpidos e brancos, os sábios traçam planos de campanha contra os
agentes das pestes que enchiam a Europa medieval de lágrimas, luto, preces
ardentes e chamaradas purificadoras, tornando desertas as florestas da
Alemanha, quando as populações fugiam em massa aos flagelos misteriosos.
Eu sei: vais-me dizer que o «espírito»
nada ganhou desde o cidadão ateniense do tempo de Péricles, eloquente e subtil
na graça do seu manto, irradiando finura intelectual, embora ignorante das
aplicações dos raios ultravioletas, do rádio ou das ondas hertzianas, até ao
técnico moderno, quer este fenda os ares num voo de centenas de quilómetros à
hora, quer rasgue um ventre para recompor-nos as vísceras atrapalha das ou
salvar um bebé. Concordo que estarão entre si como um botão de brilhantes do
peitilho e um modesto botão de cuecas. O homem não terá talvez melhorado a alma, ao melhorar a máquina e a técnica:
mas melhorou a vida. E o bom do Sócrates, se vivesse neste nosso tempo de
progresso, em lugar de cicuta, teria muito naturalmente tomado um avião que em
poucas horas o deixaria em Paris, onde o seu espírito resplandeceria mais do
que num forçado exílio entre Citas ou Persas. Dir-me-ás que a cultura
espiritual sobreleva ao progresso: mas que me contas da «espiritualidade» de
Abel e Caim? Não olhes apenas à qualidade: enquanto, no tempo de Platão, era
bem reduzido o número de homens que gozavam do contacto com as ideias
superiores – os «discípulos» apenas –, hoje, pela telefonia sem fios, pelo
telefone, pelo fonógrafo, pelo cinema, pelo jornal, a revista, e o livro
sobretudo, e pela viagem cómoda e barata, qualquer homem sequioso de cultura
pode ouvir, ler, ver ou palpar as obras do pensamento humano (**). Ah, tu que vais ao cinema e
compraste um toca-discos ou um radiorreceptor para ouvir à noite, em casa, o
Menano ou o Fleta, ou os acordes de algum jazz
de Nova Orleães, tu que aspiras a um apartamento com aquecimento central,
ascensor, telefone, canalização decente e banho, não podes pregar, não tens o
direito de pregar contra o progresso! (***)
E tu foste aplaudir a sua destruição
brutal na Metropolis de Fritz Lang,
esse filme que H. G. Wells (sempre os odiados racionalistas!) classificou de «o
mais estúpido do mundo»: porque, vítima que és dum preconceito sobre a
civilização, cuidas que a máquina, o motor, o cimento armado, escravizam e
aniquilam a humanidade, como se houvesse algum progresso que, a par disso,
pudesse fundar-se num princípio que não fosse o da liberdade, o da saúde, o da
alegria de viver dos homens!
Não, se os homens ainda hoje caminham
por vezes de cabeça curvada, o ano 2000 vê-los-á talvez erguê-la altivamente. As
máquinas, aliás absurdas e monstruosas, que nesse filme te figuram escravizado,
desumanizado, regimentado, serão precisamente os instrumentos da tua definitiva
libertação. O ano 2000 não será de sombra, mas de luz. E pensa, tu que hesitas,
como a burra de Buridã, entre a negação e a exaltação do progresso, embora
vivas desafogadamente à sua custa, que dele resultará a definitiva emancipação
do homem, quando os povos, sem precisar de destruir cidades nem motores, entrarem
na usufruição pacífica e definitiva dos produtos de um penoso trabalho de
milénios.
(A Notícia,
1928)
(***) Os
avanços da Medicina podem não ter melhorado o homem: mas não será um progresso
ético e espiritual o sabermos que as vidas humanas, as das crianças em
particular, estão hoje muito mais ao abrigo da morte e da dor? (1962)
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