24 - Abril (segunda). Acabei há pouco o Capítulo XIII do romance em que o narrador fala do fresco de Pompeia e dá banho à mulher (Mónica). O livro está-me a sair fácil e todavia sinto que tem falhas.
Não sei. Tenho coisas a dizer, vejo bem o que não é muito visível para os outros, tenho «estilo» para adoçar o bico ao leitor e no entanto sinto que me falha o verdadeiro caminho por onde tudo isto devia passar. É inexplicável. Sobretudo porque a obra dos outros, mesmo de muitos alteados no panegírico, não me interessa absolutamente nada. Há aqui um desajustamento dos meus genes a um modo de se ser artista e que não entendo. Ler os livros que escrevi desgosta-me bastante. Mas sei que era por ali que devia fazer o meu caminho. De vez em quando uma página ou outra de um autor entusiasma-me e vexa-me mesmo por me entusiasmar. Mas volto a lê-la uma e várias vezes. E quase sempre o entusiasmo evapora-se. A verdadeira arte não está em parte alguma e é só o nosso apelo a que exista e se vai cumprindo acidentalmente nesta obra e naquela, e fica intacto e irrealizado para se julgar que se realiza numa outra obra e noutra até ao infinito, que é onde deve estar a obra definitiva. De todo o modo, concluí há pouco (são 16h e 15m) o capítulo do fresco de Pompeia. É um fresco de um encantamento sublime. Leve, aéreo, grácil na figura da «Primavera» (ou deusa Flora) que, num jeito ondeante e subtil do andar, colhe à passagem uma flor na ponta de dois dedos delicados e encosta ao peito com a outra mão um açafate de flores já colhidas. Vai de costas, vê-se-lhe só uma breve linha da face, tem o cabelo preso por uma fita e enrolado na nuca. E há a túnica hierática e o manto leve, descaído nas costas, sustentado dos dois lados nos braços. É um instantâneo fulgurante. E contraposto à imagem do fresco, há o corpo degradado de Mónica, lavado pelo narrador. Estou cheio de curiosidade em saber o que escrevi. Mas não vou ver.
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A minha cabeça ainda. Mas mais esclarecida. À força de drogas. E de uma insuportável abstenção de um bom copo às refeições. Merda para a velhice. Não me venham com essa do velho augusto, venerando e tudo o mais com que se iludem as crianças da minha idade. Merda para o venerando. Mas enfim, o cigarro já o vou aguentando sem me rebentar os fusíveis do miolo. E dele me vou valendo para esta coisa estúpida e vã de uma loucura mansa, que é escrever. Nada de mais absurdo na minha idade. Nada de mais inútil. E nada de mais sublime.
conta-corrente – nova série I (1989)
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