19 - Abril (quarta). Vínhamos da cantina, a Regina e eu, e vimos de novo a farrapeira. Estava a almoçar um bocado de casqueiro. E estava sentada, de perna cruzada, no passeio estreito que borda a entrada no túnel da avenida. E de um lado e do outro, em fileira, os pacotes de lixo da mercadoria. Mas pela primeira vez que me lembre, lia um jornal. Roía a côdea de perna traçada e ia lendo. De vez em quando mudava de folha com a ajuda do vento. Parámos para vermos o género da sua instrução e talvez mesmo as suas inclinações políticas. Seria o Diário, como convinha à sua condição proletária? Seria o Diabo mais condizente com a infeliz tendência reaccionária do povo?
Ou o Independente cheio de pilhéria daquele colaborador que renegou o nome do pai para ser apenas filho da mãe? Mas num intervalo desta dúvida metódica, arrumou a instrução e dobrou-a com o título à vista. E vimos que era a Bola, o único jornal desportivo cantarolado pela esquerda que se preza, decerto por ser lá grande senhor, ao que me dizem, um senhor muito dado ao progresso. E tudo nos reentrou na ordem. E nela a farrapeira e a sua condição proletária.
A propósito: o jornalista em questão e os que glorificam esse jornal por causa dele, não terão as suas reservas para com os futebolistas que chutam com o pé direito?
conta-corrente - nova série I (1989), p. 70 e s.
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