sexta-feira, 29 de abril de 2011

Cadernos de Lanzarote (Diário – I)

29 de Abril
A propósito da publicação em França do seu Requiem, Antonio Tabucchi dá uma entrevista a Le Monde. Em certa altura, o entrevistador, René de Ceccaty, informa os seus leitores de que Tabucchi é o principal introdutor da literatura portuguesa em Itália, asserção que não pretendo discutir, mas que, desde logo, seria bastante mais exacta se, onde se diz é, se tivesse dito foi. O que sobretudo me interessa aqui é o que vem a seguir, posto no francês próprio para que não se percam nem o sabor nem o rigor: «Toutefois, si l'on évoque José Saramago, Tabucchi prend un air absent et détourne le regard. Manifestement, c'est vers une autre littérature que ses affinités le dirigent.» Porque René de Ceccatty passou de imediato a outro tema, porque, por distracção ou delicadeza, não perguntou a Tabucchi a razão profunda daquele «ar ausente» e daquele «desvio do olhar», devo ter perdido a grande ocasião de conhecer, enfim, os motivos da hostilidade mal disfarçada e da evidente frieza que Tabucchi manifesta sempre que tem de falar de mim ou comigo. Acontece na minha presença, posso imaginar, a partir de agora, como será a ausência. Disse que perdi a ocasião, mas talvez não seja assim. Toda a entrevista se desenrola no campo da relação vivencial e intelectual de Tabucchi com Pessoa, e foi justamente isto, este discurso fechado, este ritornelo obsessivo, que, num repente, me pôs a funcionar a intuição: Antonio Tabucchi não me perdoará nunca ter escrito O Ano da Morte de Ricardo Reis. Herdeiro, ele, como faz questão de se mostrar, de Pessoa, tanto no físico quanto no mental, viu aparecer nas mãos de outrem aquilo que teria sido a coroa da sua vida, se se tivesse lembrado a horas e tivesse a vontade necessária: narrar, em verdadeiro romance, o regresso e a morte de Ricardo Reis, ser Reis e ser Pessoa, por um tempo, humildemente – e depois retirar-se, porque o mundo é vasto de mais para andarmos cá a contar sempre as mesmas histórias. Admito que a verdade possa não coincidir, ponto por ponto, com estas presunções minhas, mas reconheça-se, ao menos, que se trata de uma boa hipótese de trabalho... Como se já não fosse suficiente carrego ter de levar às costas a inveja dos portugueses, sai-me agora ao caminho este italiano que eu tinha por amigo, com um arzinho falsamente ausente, desviando os olhos, a fingir que não me vê.
Quando Blimunda foi representada em Lisboa, escrevi umas poucas linhas para o programa, texto esse a que dei um título: «O Destino de Um Nome». Agora, duas cartas recentes, uma de minha filha, outra de minha neta, fizeram-me voltar a reflectir nisto dos nomes das pessoas e respectivos destinos. Contei já como e porquê me chamo eu Saramago: que Saramago não era apelido de família, mas sim alcunha; que indo o meu pai a declarar no registo civil o nascimento do filho, aconteceu que o empregado (chamava-se ele Silvino) estava bêbado; que, por sua própria iniciativa, e sem que meu pai se apercebesse da fraude, acrescentou Saramago ao simples nome que eu devia levar, que era José de Sousa; que, por esta maneira, graças a um desígnio dos fados, se preparou o nome com que assino os meus livros. Sorte minha, e grande sorte, foi não ter eu nascido em qualquer das famílias de Azinhaga que, naquele tempo e por muitos anos mais, ostentavam as arrasadoras e obscenas alcunhas de Pichatada, Curroto e Caralhana... Entrei na vida com este nome de Saramago sem que a família o suspeitasse, e foi mais tarde, quando para me matricular na instrução primária tive de apresentar uma certidão de nascimento, que o antigo segredo se descobriu, com grande indignação de meu pai, que detestava a alcunha. Mas o pior foi que, chamando-se meu pai José de Sousa, a Lei quis saber como tinha ele um filho cujo nome completo era José de Sousa Saramago. Assim intimado, e para que tudo ficasse no próprio, no são e no honesto, meu pai não teve mais remédio que fazer, ele, um novo registo do seu nome, pelo qual passou a chamar-se também José de Sousa Saramago, como o filho. Tendo sobrevivido a tantos acasos, baldões e desdéns, havia de parecer a qualquer um que a velha alcunha, convertida em apelido duas vezes registado e homologado, iria gozar de uma vida longa nas vidas das gerações. Não será assim. Violante se chama a minha filha, Ana a minha neta, e ambas se assinam Matos, o apelido do marido e pai. Adeus, pois, Saramago.
José Saramago (1922/11/16 – 2010/06/18)

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