18 - Abril (terça). É duro chegar ao fim da vida e ter de concluir que falhei. Praticamente em tudo. Mas dói-me isso especialmente na incansável tentativa de ser coisa de ser no fazer livros. Mas o mais duro da coisa é eu não ser capaz de entender porquê. Ridículo ressentimento do menino mimado – dizem-me. Não é. Há uma prova real no juízo lá de fora, onde tudo tem assento e subsequente transacção no comércio e na crítica. Alegria Breve foi um fiasco na «Gallimard». Houve agora a invasão dos nossos escribas e mais ou menos todos tiveram o seu acepipe de louros. A mim, com o Para Sempre, deram-me um osso. Vou ser infeliz com abundância. Vou chamar coisas agrestes ao destino. Vou insultar Apolo que me não soube iluminar para não confundir um génio com um cretino. Dizem: mas veja, ó ingrato, como no país já até o dizem célebre. Vão para o inferno mais a consolação. Naturalmente estou velho e vou sendo promovido por antiguidade. Como os oficiais tarimbeiros. É só.
*
Puxei hoje pelo romance. Estou tentando dar o encantamento do fresco de Estábias (sul de Pompeia) em que o narrador se esforça por projectar a idealidade da mulher morta. E depois fui ao meu difícil esticão (1 km?) até às livrarias. Todo o físico me batia o pé a dizer que não. Tive de o arrastar à força. E na Barata encontrei António Afonso Borregana, um dos meus quatro estagiários do único estágio que orientei na vida, logo após o 25 de Abril por conveniência revolucionária. O bom do Borregana era na altura padre. Despadrou-se, casou-se, paternizou-se em três filhos e agora estava cá em Lisboa integrado na comissão que está revendo os programas secundários. Na comissão (como em todo o lado) enxameia a comunada. Mas há que deixá-la bracejar, pois que, se a não deixarem ter a palavra, a coisa não anda. De vez em quando a camuflada diz-lhe:
– Já leu o livro do Saramago? Já leu o livro do Cardoso Pires?
E ele um dia, enfim, também arriscou:
– Já leu o livro do Vergílio Ferreira?
E a comunada disse:
– O Vergílio Ferreira já escreveu uma ou outra coisa com algum interesse. Mas agora está tolinho.
Toma aí, que é para seres mais progressista.
conta-corrente - nova série I (1989), p. 69 e s.
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