Cada um é para o que nasce – costumava glosar um cantador ao desafio muito aplaudido nos meus tempos de rapaz. Eu devo ter nascido para enfiar barretes. Ontem enfiei mais um. E dos grandes.
Saía eu das Caldas de Chaves, onde me encontro em gozo de férias e tratamento de águas, quando me disseram que no Jardim Público, onde acabara de ser inaugurada uma Feira de Artesanato, havia Vitela Barrosã.
Reuni um grupo de amigos e, com eles à minha frente, avancei para o Jardim Público a cantarolar a Marcha de Montalegre, cantiga da minha muita devoção, ou não fosse ela obra de padres.
Lá estava, ao fundo, sobranceiro ao rio Tâmega, um grande pano branco com este in hoc signo vinces escrito a vermelho e letras garrafais: VITELA BARROSÃ.
Íamos a contar com uma esplanada digna da nossa terra e compatível com o nosso orgulho. Encontrámos um balcão tosca e porcamente amanhado, um fogareiro a condizer e meia dúzia de mesas de tasca-rasca, muito sujas e artesanais. Como estávamos numa Feira de Artesanato, adiante com o andor. Reunimos três delas e aguardámos.
Fomos atendidos displicentemente por um aprendiz, estagiário ou simples botequineiro de fim-de-semana. Perguntámos o que havia?
– Entrecosto, costeletas, bifes, pão e vinho.
Fizemos a encomenda.
– E vá trazendo uma garrafa. Maduro tinto.
Veio a garrafa. Peguei nela para ver a marca. Vinho branco – dizia o rótulo. Esfreguei os olhos: «Estarei eu já toldado?» Não estava. O líquido era realmente tinto. Resta saber se a cor lhe vinha da uva, da baga de sabugueiro ou de pós de perlimpimpim. Seja como for, uma garrafa cujo conteúdo não condiz com o rótulo, provoca o riso e gera desconfiança.
Enquanto discreteava sobre o assunto com os amigos, chegou o entrecosto. Quadrei-me com o primeiro bocado. Mas ao tentar espetá-lo, o malandro furtou-se ao estoque, fez-me ricochete na carcela das calças e desapareceu. Deve ter ido parar ao rio.
Concentrei-me melhor na faena e lá consegui bandarilhar o segundo naco. Mais difícil foi meter-lhe o dente. Aquilo parecia a tal sola que os mareantes da Nau Catrineta deitaram de molho.
Queixei-me aos companheiros.
– O bife não está mau – contrapôs um deles.
– Só é pena não terem pão centeio.
– Isto é uma vergonha...
Pior foi quando veio a conta: dois mil escudos por cabeça. Sem apelo nem agravo...
– A Câmara, a Cooperativa Agrícola, a Associação de Criadores de Gado Barrosão ou lá quem superintende no comércio e bom nome da VITELA BARROSÃ, deviam estar mais atentas a estas coisas...
– Não é por este processo que se promove um produto...
– Dois contos de réis por um torresmo, pão e vinho...
– Vão para a estrada... – eram os desiludidos comentários, enquanto nos afastávamos a sacudir, biblicamente, o pó das sandálias.
Não obstante, hoje de manhã, ao sair de casa, reparei que levava os sapatos cheios da terra batida do Jardim Público. Dirigi-me ao fundo da Rua de Santo António, poiso habitual dos engenheiros da limpeza de calçado lá da terra. Encontrei dois. Um em acção, outro às moscas.
– Está livre? – perguntei.
– Sim senhor. Ora ponha aqui o seu pezinho.
Era falador, o velhote. Falador e calaceiro. Limitou-se a sacudir-me o pó mais grado e visível. Interim, reparei que o outro cliente estendia uma nota de quinhentos escudos ao graixa e se afastava a resmungar não percebi o quê. «Homem generoso!» – pensei. E, levado pelo bom exemplo, resolvi de mim para comigo, deixar trezentos.
– Quanto é? – inquiri.
– Quinhentos mil réis.
– O quê?!
– É o preço.
– Não sabia.
– Fica a saber.
– Mas isso dá direito a cordões novos, meias solas ou qualquer outro bónus?
– Um pontapé no cu, se não se despacha.
– Passa, ao menos, recibo?
– Se pagar o IVA.
– Não pago coisa nenhuma. Você devia ter aí o preço exposto e bem visível, para não enganar os papalvos.
– Paga ou chamo a polícia?
– Para o meter na cadeia?
Neste ponto, reparei que o outro profissional se aproximava, escova do ofício em riste, viseira descida. Resolvi pôr o corpinhoa salvo:
– Tome lá. Mas que é um exagero, é.
– Vêm praqui estes turistas de meia tigela...
– Armar-se em carapaus-de-corrida... – ainda ouvi pelas costas.
Mas não me dei por achado. Meti-me no carro e refugiei-me em Peireses.
Não há como estar a gente na nossa santa terrinha, no santo ripanço, livre de oportunistas e exploradores.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 66 e ss.)
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