segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

PANCADARIA VELHA

A propósito da neve de Fevereiro, falei no Faia de Travassos. A propósito do sol de Março, evoco de novo essa figura mítica da minha infância.
Era por esta época do ano que ele aparecia por aí à pesca da truta. E que eu, na altura caloiro de primeiras letras e guardador de vacas em lameiros ribeirinhos, corria a ele de braços abertos:
– Eh, Faia!
– Eh, Marinheiro pequeno! O teu pai?
O meu pai também era pescador e, quando ia ao rio com mais demora, levava farnel.
Não será ofensa nenhuma à memória do Faia supor que ele vinha por aí acima e aturava as minhas criancices na mira de que meu pai aparecesse e o convidasse para a merenda. Mas eu não me apercebia disso e, tomando por meu o que era mérito alheio, ia-me divertindo e aprendendo com as larachas do Faia, homem de larga experiência de vida e muita sabedoria antiga.
Como toda a gente sabe, e, quem não souber, fica a saber, eu frequentei a escola primária de S. Vicente da Chã, a uns três quilómetros de minha casa. Chegado à 4.a classe, a professora exigiu de meus pais que, para eu não perder tempo pelos caminhos, me providenciassem aposentadoria em S. Vicente. E foi então que uma irmã do Faia, a Senhora Maria do Professor, generosa e desinteressadamente me cedeu cama e mesa – favor que eu nunca lhe agradeci mas espero bem que Deus lho tenha levado em conta.
Quando vinha a casa da irmã, o Faia saía de lá quase sempre já de noite e quase sempre já pingueiro. E era então que nós, a gandulagem da 4.a classe, uns oito ao todo, nos divertíamos com ele. Pegávamos cada qual em seu porrete e íamo-nos emboscar atrás da capela de S. Gonçalo, a uns oitenta metros da povoação, no caminho de Travassos.
Deixávamo-lo aproximar e gritávamos-lhe:
– Eh, Faia! Dizes que és valente, puxador de pau, varredor de freiras, que fazes e aconteces, mas hoje é que vamos ver que espécie de homem és tu. Salta para cá!
O Faia estacava de repente, a fingir-se muito espantado e surpreendido, muito hesitante entre o ataque ou a fuga. De chofre, como quem ganha coragem, fazia peito e engrossava a voz:
– Aqui ninguém as corta. Não há homens para o Rafael de Pedrário, o Afonso de Negrões, o Pedreira de Parafita e o Faia de Travassos.
«Siga a malta, siga a malta,
Siga a malta, trema a terra!
Venha lá o que vier,
Esta malta não arreda!» – cantarolava. E depois, traçando o varapau nas duas mãos acima da cabeça.
– Quietos! Quietos! Aqui ninguém bate sem minha ordem!
– Fugi, rapazes, que ele não vem só! – dizia um de nós.
– Venha quem vier! Aqui não há medo! – retrucava outro.
– A eles!
E saíamos a terreiro, de paus no ar e grande algazarra.
Então o Faia arremetia a nós e começava a distribuir bordoada a torto e a direito, mas sempre nas paredes.
– Ai! – dizíamos nós, atirando-nos ao chão.
– Este, já se foi! Mais um! Outro! – dizia o Faia a cada nova pancada e vítima fictícia.
– Pronto, rapazes! – gritava ele aos imaginários companheiros, quando nos via a todos por terra. – Mais uma varrimenta, e toca a retirar, antes que apareça a guarda e nos prenda.
Quantas vezes, ao ensaiar a última pirueta de varapau por cima da cabeça, o velho Faia se desequilibrava e ia ter, ter, ter, de encontro a uma ribanceira.
Nós prodigalizávamos-lhe uma enorme e filial ovação. E ele, paternalmente divertido, fazia-nos um largo gesto de despedida e retomava o caminho de Travassos, «ditosa Pátria que tal filho teve».
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 200 e ss.)

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