terça-feira, 27 de dezembro de 2011

NOITE DE NATAL

Ao arrepio de todos os pressupostos, a neve faltou ao Natal. Mas fez-se representar por um seu parente muito próximo: o frio.
Com a idade que tenho, e já não é ela tão pequena, não me lembra de os termómetros atingirem níveis tão baixos em Barroso. O país assistiu, incrédulo, pela televisão, ao espectáculo inédito duns jovens aventureiros de Montalegre a passearem de automóvel sobre as águas geladas do rio Cávado.
No tanque do meu vizinho, o carambelo atingiu dois palmos bem medidos de espessura.
Para dar de beber ao burro, o meu vizinho teve de atacar o gelo a golpes de picareta.
Trabalho baldado. O asno estendeu a beiça, provou e fez uma carranca de repulsa, como a dizer: vai-te lixar, bebe-a tu... E todo arrepiado, em bicos de cascos, fugiu para o ninho.
Burro fino! Tolos são aqueles que saem para a rua com este vento cortante, mais afiado que barbeira de Fígaro de Sevilha.
Antigamente dizia-se que vinha de Espanha. Agora dizem que vem da Sibéria.
O mundo está cada vez mais pequeno.
Pequeno e revolto. Enquanto a Europa treme de frio, a América Latina afoga-se em água e a Austrália é um imenso e incontrolável braseiro.
Quanto a mim, a loucura e ganância do homem há-de dar com o planeta em pantanas. Destroe as florestas, desertifica as terras aráveis, envenena a atmosfera, empeçonha os rios, polui os mares.
Ninguém me tira da cabeça que essa história das viagens no espaço desencadeou a cólera dos deuses do Olimpo. Faz-me lembrar a alegoria bíblica da Árvore do Bem e da Árvore do Mal.
O homem devia ter a humildade de admitir que há coisas que lhe estão vedadas. Quem o mandou meter o nariz no infinito?
O nariz e o resto: sondas, foguetões, satélites, naves espaciais e outras sucatas.
Depois falam em buracos na camada do ozono, efeitos de estufa, aquecimento da terra, liquefacção dos gelos polares, subida dos oceanos, cataclismos.
A vingança dos deuses começou.
A América Latina é um mar de água, a Austrália uma fornalha, toda a Europa uma Sibéria.
Em Barroso, na noite de 24 de Dezembro, os termómetros desceram a treze graus negativos...
– É dose p'ra burro! – como diz o meu vizinho, brasileiro de torna-viagem.
Realmente é. Não obstante, para mim, a Noite de Natal continua a ser a mais quente do ano.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 112 e s.)

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