Durante todo este mês
de Fevereiro os locutores da televisão nos martelaram os ouvidos com a
sugestiva e originalíssima frase: «Está um frio de rachar!»
Rachar o quê? Lenha
para o lume, naturalmente.
De rachar ou não,
durante este mês de Fevereiro, os termómetros desceram aos dez graus negativos
na minha aldeia. Mas sabem lá os senhores da televisão onde fica a minha
aldeia? Conhecem Lisboa, o Porto, a serra da Estrela e pouco mais. E o partidão
que eles têm tirado dos zero graus de Lisboa e arredores para gargantearem
lamentações de Jeremias sobre a desgraça dos velhos que não dispõem de roupa
para o corpo nem lenha para o lume e das crianças que se vêem obrigadas a
frequentar escolas sem aquecimento suficiente.
Que pena no meu tempo
não haver televisão! Estou mesmo a ver os trenos que esses corações sensíveis
não teceriam sobre a desventura dumas criancinhas que percorriam diariamente
vários quilómetros de maus caminhos para frequentarem uma escola, já não digo
sem aquecimento, luxo ao tempo desconhecido, mas sequer uma retrete. Quando a
necessidade apertava, e a professora deixasse, corríamos atrás daquelas paredes
e toca a despachar.
E não me lembro de
algum de nós, e éramos uns quarenta, de ambos os sexos e das quatro classes, se
queixar do frio. Bastava que nos dessem cinco ou dez minutos para correr e
saltar no largo e regressávamos com as pilhas carregadas de calorias para o
resto do dia.
Pudesse eu hoje fazer
o mesmo. Infelizmente não posso. Aí é que os velhos estão em desvantagem.
Quanto às crianças das escolas, deixem-nas correr que elas aquecem.
E a propósito de
velhos e frio, vou contar uma passagem da minha luminosa infância.
Teria eu uns cinco ou
seis anos e frequentava o jardim-escola
do monte atrás das vacas. Um dia fui com elas para Castanheira. Do outro lado
da parede guardava as dele o velho Jandias, de Medeiros, aldeia contígua à
minha. Fazia o tal frio de rachar e
eu cabriolava lameira acima e abaixo, para aquecer. Às tantas fez-me espécie
que o meu colega de pastoreio se mantivesse muito quieto e encolhido de
encontro ao tronco dum carvalho. Aproximei-me. O homem vestia capa de burel já
esgarçada no capuz e nas ombreiras, camisa de estopa a pedir barreta, jaleco e
calças de estamenha com remendos sobrepostos e não usava carpins. Viam-se-lhe
os calcanhares cheios de calosidades e imundícies a sobressaírem duns socos
abertos forrados de palha. Choravam-lhe os olhos e o nariz e todo ele tremia e
matraqueava os dentes como se estivesse com sezões. Assustei-me:
–
Está doente, Ti Jandias?
–
Não. Estou com frio.
–
Porque não dá uma corrida para aquecer?
–
Oh, meu homem! Isso foi tempo… Agora as
pernas já me não permitem floreados desses…
Na altura não
compreendi. Hoje compreendo perfeitamente. Só é pena ser tanto à minha custa…[1]
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 49 e s.)
[1]
Imitação de Luís de Camões.
«Mas eu de vossos males e
esquivança,
De que agora me vejo bem
vingado,
Não o quisera eu tanto à
vossa custa»
Soneto n.º 177.
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