Como sempre o tenho feito,
também este ano vim passar o Natal à aldeia. Costumo dizer, na brincadeira:
para mim, Natal fora da aldeia, não é Natal. Natal é a festa do Menino. Ora foi
aqui que eu fui menino.
Nesses recuados
tempos, Peireses era uma aldeola tão isolada e perdida no mapa, que nunca o Pai
Natal por aqui passou. Também, se passasse, não encontraria nas chaminés, e
eram muitas, um sapatinho para amostra. Todos nós andávamos de tamancos.
Era de tamancos que
íamos beijar o Menino à capela. Aquilo era um estrépito de tamancos nos
taburnos de granito, que até os santos dos altares nos faziam carranca. Só o
Menino, de costas nas palhinhas do presépio, continuava a sorrir o seu eterno
sorriso estereotipado.
–
Bem te percebo, maganão – dizia-lhe eu em
pensamento, enquanto lhe beijava o pezinho rubicundo –, ris-te, porque sabes que os Reis Magos vêm a caminho e te vão encher
de presentes. Bem podias dividir comigo, felizardo. Dizem que vieste para me
remir do pecado. Preferia que tivesses vindo para me dares uns socos novos, que
estes que trago andam nas lonas e já metem água.
A bem pouco se
resumiam as minhas ambições. Mas eu acreditava e era feliz.
Acreditava no
nascimento do Menino, na vinda dos Reis Magos.
Passei horas a olhar
para o céu estrelado, à descoberta da Estrelinha do Oriente. Deve ser por isso
que eu sempre fui um cabeça no ar. É por isso que eu ainda hoje conservo o
hábito de olhar para o céu estrelado.
Assim aconteceu ontem,
noite de Consoada. A ceia foi superabundante, abusei e custou-me a conciliar o
sono. Farto de dar voltas na cama, levantei-me e vim para a janela. Em noites
frias, límpidas e sem lua, o céu de Barroso é um dos mais belos e misteriosos
do universo. Há uns setenta e cinco anos que, nesta quadra natalícia, o observo
atentamente. Pois bem. Nunca vi estrela nenhuma a mover-se pelo firmamento ao
ritmo duma cáfila de dromedários ajoujados de ouro, incenso e mirra. De modo
que, a mítica Estrelinha do Oriente a indicar o caminho de Belém aos Reis
Magos, deve ser fábula.
Cansado do
espectáculo, ia a retirar-me da janela, que vejo eu, rua acima? Uma raposa…
Quedei estupefacto. Teria visto bem? Uma raposa rua acima e nem um latido de
cão, um alvoroço de galináceos nas capoeiras, um tiro de espingarda?
Abri a janela
devagarinho e debrucei-me. Não havia dúvida. Uma raposeta de samarra nova,
lépida, despreocupada, com o ar mais inocente deste mundo, rua acima.
Abanei a cabeça, ainda
tonta do vinho da ceia, pensativo e incrédulo. Irá ela visitar o Menino?
Estarei eu perante um milagre? Será que afinal, esta sempre é a «Noite Santa»,
a «Noite de Paz», a «Noite da Concórdia», não só entre os homens, mas também
entre homens e bichos e entre bichos, homens e Deus?
Apeteceu-me descer à
rua, ir atrás da raposa, pegar nela ao colo, beijá-la, perguntar-lhe se já
tinha ceado, se precisava dalguma coisa. Mas a geada bateu-me em cheio nas
orelhas e obrigou-me a fechar a janela e correr para o leito.
Adormeci feliz, a
cantarolar o «Glória a Deus nas alturas e Paz aos homens e aos bichos na
terra».
Acordei com o sol de
Inverno na vidraça e grande alarido na rua. Fui ver o que era. Uma vizinha a
maldizer a porca da vida: «Oh, gente! Não quereis lá ver? Com a azáfama da
Consoada, esqueci-me de fechar as galinhas. Sabeis o que me aconteceu? Veio a
raposa e levou-mas todas. Vinte e duas! Excomungada! Teve melhor Natal do que
eu… De veneno lhe sirvam!» E chorava desconsoladamente.
Fiquei desiludido.
Afinal, o milagre estava explicado. Ora cebolório!
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 76 e s.)
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