S. Martinho de Anta, 24 de Dezembro de
1976 – São tantas da noite. Sentado à lareira, com o rádio aberto a
transmitir os gorjeios de uma senhora que me parecem um comentário escarninho
ao que escrevo, medito na minha vida, cada vez mais perto do fim. O que fiz e
não fiz, o peso que tiveram em tudo quanto realizei literariamente, e até
humanamente, esta paisagem e as sombras que a habitam, a distância a que fiquei
da meta que me propus ou que as circunstâncias me iam propondo, a luta que
travei para ser convivente até ao limite da dignidade, e como foram
catastróficos certos desfechos afectivos. Poucos quiseram compreender que um
poeta nem pode deixar de ser rebelde, nem ceder à tentação de se ver
transformado em bandeira. Que o seu destino não é sentir-se identificado. Mas
que, embora isolado do semelhante, não está obrigatoriamente separado dele. E
que, faça o que fizer, fica sempre fora da expectativa dos outros e da sua
própria. Tão desencontrado consigo mesmo, que só se encontra para se perder
ainda mais.
E, a pôr destas
achas na fogueira, aqui estou à espera que o Menino Jesus nasça e que o seu
divino desamparo dê lenitivo ao meu. Só que ele tem mil Natais para recomeçar.
E eu não.
DIÁRIO (XII), Miguel Torga
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