Há algo de cerimonioso no Natal que
irrita e seduz: a iconografia kitsch, a simbologia (no entanto vasta: um
deus nascendo, menino, entre os homens e, ao mesmo tempo, um homem nascendo
humanamente entre os deuses, um vértice vertiginoso em que, por um momento,
divindade e humanidade se tocam) reduzida à extrema literal idade por séculos
de púlpito, o comércio dos presentes.
E o melancólico ritual das crónicas
natalícias. Em mais de trinta anos de jornais, devo ter escrito, pelo menos,
duas dúzias delas. E de todas as vezes me sentei diante da máquina de escrever (agora
diante do insondável écran do computador) com a inquieta sensação de ter sido,
também eu, apanhado (e como poderia não o ser?) numa amável armadilha.
Rubem
Braga repetiu uma vez no Cruzeiro uma crónica que já publicara
antes, justificando-se com a desconcertada circunstância de Van
Gogh não ter pintado os Girassóis
(cito de cor, os exemplos podem ter sido outros) para serem olhados apenas
uma vez, nem Beethoven
composto a Pastoral
para uma única audição. Fosse eu Rubem Braga e, provavelmente, escreveria
hoje, de novo, uma crónica já longínqua intitulada «Os dois natais». Assim
resta-me a memória.
Porque tudo é memória. Alguém – talvez
eu, mas quem? – lembrando-se de mim. A mãe, na cozinha, fazia os fritos e eu
punha a mesa. Do candeeiro da sala pendiam fitas douradas e estrelas de papel
de lustro e tínhamos colocado raminhos de azevinho nos espelhos do louceiro. No
presépio, minuciosamente construído com musgo, serradura, algodão em rama,
palhinhas, faltava o rei mago preto, que caíra e se quebrara no ano anterior,
e, no seu lugar, avultava insolentemente, por birra do meu irmão mais novo, um
jogador do Sporting, com bola e tudo!
Em que lugar o passado permanece
imovelmente passado, passando para sempre? Quem, como num sonho, se lembra
agora de tudo isto?
O Natal era então tempo de solidão.
Uma brevíssima eternidade parava, sem eu saber, a meu lado, muito perto de mim,
tão perto que quase podia tocá-la. E, contudo, ocultamente e culpadamente, como
se pecasse, eu sentia-me infeliz sem motivo. Às vezes fechava-me no quarto a chorar
em silêncio, até que a mãe vinha bater à porta chamando para o jantar. Depois,
à meia-noite, abria um a um os coloridos embrulhos dos presentes, pressentindo
confusamente que, ao recebê-los, os perdia para sempre. Da mesma forma
inconcreta como o Natal e eu próprio nos perdíamos também.
Por alguma grande razão me recordo
destas coisas. Ou se recordam elas de mim: a mãe, a sala, a toalha bordada
sobre a mesa, o cão ladrando lá fora no quintal. Talvez, quem sabe?, seja
preciso arrancar as raízes, «cortar a árvore, fazer uma cruz e levá-la às
costas». Talvez seja preciso criar raízes na ausência de tudo. Mas para que?,
para que?
Hoje sinto-me como um intruso nesse
secreto Natal infantil passado. As minhas palavras perturbam o seu silêncio, o
meu olhar cega-o, a minha memória afasta-o irremediavelmente de mim. Dele
apenas imagens dispersas ficaram: fitas, estrelas, figurinhas de barro. O resto
já não me pertence. Ou (como posso sabê-le?) pertence-me num sítio que já não
me pertence. E onde não me é dado, nem às minhas palavras, alcançar.
Visão, 26/12/2002
Manuel António Pina
Sem comentários:
Enviar um comentário