Após
longas vigílias e apurados cálculos, os sábios chegaram à conclusão de que o
homem apareceu à face da terra há 3 000 000 de anos. Eu, sem queimar muito as
pestanas, cheguei facilmente à descoberta de que os meus antepassados se
fixaram em Peireses
durante o período da Idade
da Pedra Lascada, aí pelo ano 200 000 a. C.
Eram
muito religiosos os meus antepassados. Estou a vê-los de joelhos e mãos postas,
rosto virado a oriente, em adoração ao Sol. Para eles, o Sol era o deus do bem,
da luz, do calor. O único verdadeiro e origem de todas as coisas.
Imaginem
agora a angústia dos meus antepassados quando, por esta altura do ano, viam o
Sol a descair no horizonte, dia a dia mais baixo, mais oblíquo, mais frio. O
terror de que o Sol caísse no buraco, morresse, não voltasse. O pânico da Lua,
das trevas, do mal.
Como
os meus antepassados do Paleolítico,
também eu odeio o solstício do Inverno. Às cinco horas é noite… Quem pode
aguentar uma coisa destas?
Na
cidade, com as ruas bem iluminadas e cheias de gente, o dia prolonga-se até às
seis, às sete, às oito. Aqui na aldeia, mal desce o crepúsculo, recolhe tudo a
penates. Foi o que eu hoje fiz. E agora aqui estou eu de pés à lareira e olhos
de cavernícola na vidraça. Lá fora começa a nevar. É a primeira nevada deste
ano. Nevada, se continuar a cair. Que, por enquanto, são apenas uns farrapitos
raros, leves como penas de pardal caídas do beirado.
Porque
será que agora neva tão pouco? No meu tempo, caía nevão de meter medo.
Lembro-me.
Um
dia a neve atingiu um metro à porta de casa. Que, na serra, devia ter o dobro
ou mais. Nem os penedos se viam. Tudo liso.
Após
oito dias de prisão domiciliária, meu pai abriu a porta às vacas, pôs-me a
cavalo do burro e disse-me:
– Vai-as
chegar a beber.
– Aonde?
– Elas
quiserem. Toca aí pela calhelha de Vale-da-Ponte.
Vacas
e burro não pareciam muito afoitos. Eu ainda menos. Por fim a Formosa, que tinha sangue na guelra,
tomou a dianteira. Parecia um navio quebra-gelos. A Castanha seguiu-lhe o rasto. O burro atrás da Castanha. Eu a cavalo do burro.
Dum
lado e doutro do caminho, a toda a largura do horizonte, tudo branco e liso.
Nem pio de ave, nem latido de cão. Um silêncio de planeta sem vida.
Eu
ia fiado em que a Formosa, chegada a
uma pipela onde costumava beber, matasse a sede e retrocedesse. Mas a pipela
estava oculta pela neve. A vaca prosseguiu. Gritei-lhe:
– Formosa? Volta ao rego Formosa! Vaca?
Pois
sim. Peito em quilha aproado à neve, a Formosa
parecia decidida a escalar o Evereste.
Ainda
tentei deitar o burro fora da rota, ultrapassar as vacas, obriga-las a inverter
a marcha. Mas o sendeiro não me obedeceu. Eu bem lhe vergastava as orelhas com
o cajado e as ilhargas com os socos fechados. O tipo espirrava pelas ventas,
batia o fandango com as patas, mas lá atirar-se à neve, está quieto. Botei-me
abaixo, disposto a ir eu. Mas depressa recuei, com a neve pelos peitos. Voltei
a cavalgar e: «Seja o que Deus quiser…»
Fomos
ter a Gralhós.
A meio da povoação, havia um tanque com o seu chafariz. À volta do tanque uma
boa mancha de neve derretida. As vacas pararam a beber. Os de Gralhós
acorreram, surpresos e intrigados:
– Onde
vais com as vacas, Marinheiro?
– Chegá-las
a beber.
– E
então em Peireses não há água?
– Elas
gostam mais desta.
Eles
riam-se:
– Está
bem, rapaz. Que lhes faça bom proveito.
As
vacas beberam e regressaram pela mesma rota. Voltei a não encontrar vivalma
pelo caminho. Meu pai perguntou-me:
– As
vacas beberam?
– Beberam
sim senhor.
– E
o burro?
– Também.
– E
tu?
– Não
me apeteceu.
– Então
mete-as à corte e anda para o lume qu’inda obreijas.
Como
vêem, eu tive aventuras dignas de Ulisses.
O
que não tive foi um Homero que dignamente as cantasse.
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