quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

AS VACAS, O RAPAZ E O BURRO


Após longas vigílias e apurados cálculos, os sábios chegaram à conclusão de que o homem apareceu à face da terra há 3 000 000 de anos. Eu, sem queimar muito as pestanas, cheguei facilmente à descoberta de que os meus antepassados se fixaram em Peireses durante o período da Idade da Pedra Lascada, aí pelo ano 200 000 a. C.
Eram muito religiosos os meus antepassados. Estou a vê-los de joelhos e mãos postas, rosto virado a oriente, em adoração ao Sol. Para eles, o Sol era o deus do bem, da luz, do calor. O único verdadeiro e origem de todas as coisas.
Imaginem agora a angústia dos meus antepassados quando, por esta altura do ano, viam o Sol a descair no horizonte, dia a dia mais baixo, mais oblíquo, mais frio. O terror de que o Sol caísse no buraco, morresse, não voltasse. O pânico da Lua, das trevas, do mal.
Como os meus antepassados do Paleolítico, também eu odeio o solstício do Inverno. Às cinco horas é noite… Quem pode aguentar uma coisa destas?
Na cidade, com as ruas bem iluminadas e cheias de gente, o dia prolonga-se até às seis, às sete, às oito. Aqui na aldeia, mal desce o crepúsculo, recolhe tudo a penates. Foi o que eu hoje fiz. E agora aqui estou eu de pés à lareira e olhos de cavernícola na vidraça. Lá fora começa a nevar. É a primeira nevada deste ano. Nevada, se continuar a cair. Que, por enquanto, são apenas uns farrapitos raros, leves como penas de pardal caídas do beirado.
Porque será que agora neva tão pouco? No meu tempo, caía nevão de meter medo. Lembro-me.
Um dia a neve atingiu um metro à porta de casa. Que, na serra, devia ter o dobro ou mais. Nem os penedos se viam. Tudo liso.
Após oito dias de prisão domiciliária, meu pai abriu a porta às vacas, pôs-me a cavalo do burro e disse-me:
– Vai-as chegar a beber.
– Aonde?
– Elas quiserem. Toca aí pela calhelha de Vale-da-Ponte.
Vacas e burro não pareciam muito afoitos. Eu ainda menos. Por fim a Formosa, que tinha sangue na guelra, tomou a dianteira. Parecia um navio quebra-gelos. A Castanha seguiu-lhe o rasto. O burro atrás da Castanha. Eu a cavalo do burro.
Dum lado e doutro do caminho, a toda a largura do horizonte, tudo branco e liso. Nem pio de ave, nem latido de cão. Um silêncio de planeta sem vida.
Eu ia fiado em que a Formosa, chegada a uma pipela onde costumava beber, matasse a sede e retrocedesse. Mas a pipela estava oculta pela neve. A vaca prosseguiu. Gritei-lhe:
Formosa? Volta ao rego Formosa! Vaca?
Pois sim. Peito em quilha aproado à neve, a Formosa parecia decidida a escalar o Evereste.
Ainda tentei deitar o burro fora da rota, ultrapassar as vacas, obriga-las a inverter a marcha. Mas o sendeiro não me obedeceu. Eu bem lhe vergastava as orelhas com o cajado e as ilhargas com os socos fechados. O tipo espirrava pelas ventas, batia o fandango com as patas, mas lá atirar-se à neve, está quieto. Botei-me abaixo, disposto a ir eu. Mas depressa recuei, com a neve pelos peitos. Voltei a cavalgar e: «Seja o que Deus quiser…»
Fomos ter a Gralhós. A meio da povoação, havia um tanque com o seu chafariz. À volta do tanque uma boa mancha de neve derretida. As vacas pararam a beber. Os de Gralhós acorreram, surpresos e intrigados:
– Onde vais com as vacas, Marinheiro?
– Chegá-las a beber.
– E então em Peireses não há água?
– Elas gostam mais desta.
Eles riam-se:
– Está bem, rapaz. Que lhes faça bom proveito.
As vacas beberam e regressaram pela mesma rota. Voltei a não encontrar vivalma pelo caminho. Meu pai perguntou-me:
– As vacas beberam?
– Beberam sim senhor.
– E o burro?
– Também.
– E tu?
– Não me apeteceu.
– Então mete-as à corte e anda para o lume qu’inda obreijas.
Como vêem, eu tive aventuras dignas de Ulisses.
O que não tive foi um Homero que dignamente as cantasse.

 Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 73 e ss.)

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