quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

OS DOIS NATAIS


O Menino Jesus, deitado, olhava em volta e não compreendia. Entrevia difusamente o rosto fatigado da mãe, o vulto de S. José mais atrás, os olhos grandes da vaca e do burro fitando-o. Chegavam-lhe de forma obscura o murmúrio das vozes e o cheiro dos animais; tinha frio. Via também, em qualquer sítio, como num sonho, rostos disformes, punhos, gente gritando, a enorme sombra de uma cruz, e não compreendia.
A dor, quando as mãos trémulas da mãe cortaram o cordão umbilical, o sabor do sangue dela na boca, as primeiras lágrimas, a primeira carícia, o corpo de Nossa Senhora, branco e transido, era tudo tão estranho! Um deus, sobre húmidas palhas, coberto de trapos, aprendia naquele instante coisas graves e essenciais: o frio, a dor, o mistério dos sentidos, o medo indistinto de algo que ainda não podia saber.
O deus transformara-se num frágil e confuso ser de sangue e de músculos, tocado por um dom extraordinário e novo, o da vida. Os pulmões do Menino enchiam-se de áspero ar, os olhos de incompreensíveis imagens do mundo vasto e profundo do estábulo, e o sangue corria violentamente nas suas veias, líquido e quente, ruborizando-lhe as faces. E quando os seus pequenos dedos afloraram pela primeira vez o rosto próximo da mãe, o deus aprendeu subitamente, com uma alegria desconhecida, qualquer coisa densa e maravilhosa inacessível aos deuses.
Por um singular milagre repetido, um homem igual aos outros homens jazia imensamente numa tosca manjedoura, no fim de uma longa viagem interior. Um homem condenado a viver uma tragédia absurda, como a de todos os outros homens, um homem solitário e ferido de brusca e humana vida, tocado pela glória extrema da transformação e da morte. Os seus olhos olhavam pela primeira vez tudo, incapazes talvez de compreender o íntimo desígnio divino que o movia. Em algum improvável lugar, no entanto, os deuses conheciam agora algo único e absoluto sobre os homens e sobre si mesmos.
Pelo segredo essencial da infância, da «balya», por onde passa o caminho dos homens para o reino dos céus, passava também, naquele dia distante, o caminho dos deuses para a terra dos homens. Um deus nascera entre os homens, mas um homem como todos os outros nascera igualmente entre os deuses. E enquanto no estábulo de Belém a mãe dava o peito ao menino deus, noutro estábulo, noutro sítio, Adão menino estendia os braços e chegava sem pecado aos ramos altos da árvore proibida.

Manuel António Pina - JN, 25/12/1984

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