Santo da casa
O refrão diz
que santos da casa não fazem milagres, salvo que a igreja venha um dia afirmar
o contrário, que sim senhor os fazem, a dificuldade só está em documentá-los,
em reunir testemunhos bastantes e crer na fiabilidade deles. Ao que parece, Nuno Álvares
Pereira, até há pouco tempo Beato
de Santa Maria para a igreja católica, fez um milagre na vida, um único,
mas mais do que suficiente para o elevar à suprema dignidade dos altares, como
o acaba agora mesmo de decidir o papa Ratzinger, para quem,
pela amostra, qualquer milagre serve. A uma mulher que estava fritando peixe
(seria peixe?) saltou-lhe uma gotícula de azeite fervente para um olho,
causando-lhe uma chaga, uma úlcera ou algo deste jaez, com sofrimento e risco
de perder a visão do dito olho. A mulher invocou o auxílio do Beato de Santa
Maria e a ferida não tardou a fechar. Isto é o que pôde ser deduzido das
informações coligidas pela comissão vaticanal encarregada de averiguar a
limpeza das candidaturas. Resultado, temos mais um santo português na
estatística do céu.
Nuno Álvares
Pereira, o Condestável, foi sempre uma pedra básica na educação dos
portugueses, mormente nas classes primárias da escola, em que se forjavam o
espírito cívico e o sentimento patriótico dos futuros cidadãos. Bons tempos
aqueles. Guerreiro invencível (recordemos Atoleiros e Aljubarrota), espelho de
virtudes, exemplo sublime de dedicação à pátria e de fidelidade absoluta ao seu
rei, um Portugal todo feito de Nunos Álvares seria o assombro do universo, não
teríamos que esperar o Quinto
Império anunciado pelo Padre António
Vieira nem o cumprimento das profecias do sapateiro Bandarra. Há porém na vida
deste varão impoluto uma nódoa inapagável sobre a qual piedosamente costumamos
passar os olhos quando não simplesmente os desviamos. Nuno Álvares Pereira era
um homem rico, riquíssimo. Graças à liberalidade e à gratidão de D. João I pelos
serviços por ele prestados, foi acumulando bens e domínios ao longo da vida, ao
ponto de possuir mais terras que qualquer outro fidalgo do tempo, incluindo,
por extraordinário que pareça, a própria casa real. Durou isto até ao dia em
que D. João I compreendeu que por aquele andar iria ficar sem país. Se fosse
hoje, haveria expropriado, mas não encontrou melhor solução que comprar o que
havia dado, a Nuno Álvares Pereira, sim, mas também, a Martim Vasques da
Cunha, João
Fernandes Pacheco, ao irmão deste, Lobo Fernandes, Egas Coelho, João
Gomes da Silva e outros. Foi notória a contrariedade do Condestável. Tendo ido
a Estremoz mandou chamar,
como conta Fernão
Lopes, «algumas gentes, assim aqueles que o na guerra serviam como de
outros criados e amigos, e foram hi juntos soma deles, com os quais o Conde
falou, dizendo como el-Rei havia por seu serviço de lhe tirar parte das terras
que lhe dado tinha, por a qual razão se ele não podia suportar como a sua honra
pertencia com as que lhe de ficar houvessem: e que por isso se queria ir fora
do reino a buscar sua vida, guardando sempre o serviço de el-Rei…» A ideia não
foi por diante, o sangue não chegou ao rio, Nuno Álvares Pereira não saiu de
Portugal, mas para a História ficou um mistério: em que estava a pensar o
Condestável quando disse que, mesmo na «emigração» (onde? para quê? com quem?),
guardaria sempre o serviço de el-Rei? Fernão Lopes nada mais diz e a nós,
apesar de tudo, repugna-nos a ideia de que Nun’Álvares fosse oferecer os seus
préstimos aos castelhanos… Ainda assim, há algo de suspeito no facto de o papa,
ao anunciar a canonização, ter dito Nuno Álvarez…
José Saramago, O CADERNO
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