quinta-feira, 5 de junho de 2014

TRÊS COELHOS DUMA CAJATADA


Quando um homem está a contar com uma coisa e lhe sai outra, fica sempre desconsolado. Foi o que aconteceu comigo nesta quadra natalícia. Estava a contar com neve. Afinal, o céu teimou em manter-se limpo, o sol a brilhar, a geada a cair. Uma espécie de Janeiro antecipado. Nos meus tempos de garoto, dias destes, só a partir do Ano Novo. Era então que o sol se tornava álgido, a lua altaneira, as geadas de palmo.
Foi por dias desses que eu aprendi a patinar no gelo. Nos lameiros onde eu guardava as vacas, nessa época do ano sempre encharcados, formavam-se grandes lagos de carambelo, verdadeiras tentações para umas acrobacias de patinagem artística, as quais, no meu caso, não tinham arte nenhuma. Aquilo era tombo que te parte, com grandes mossas no esqueleto, dum modo particular nas partes mais salientes, género cóccix e cotovelos. Por amor ao esqueleto, mudei de táctica. Em vez de esqui, passei a fazer escu. Consistia ele em cavalgar molhos de urzes ou giestas e descer as encostas vidradas a grande velocidade, rédea firme, tronco inclinado para trás, pernas em estradiota, goelas abertas, numa atitude selvagem, nem mais nem menos ridícula do que aquela que mais tarde vi fazer a pessoas mais civilizadas na montanha russa da Feira popular de Lisboa.
A brincadeira valeu-me alguns rasgões nos fundilhos, outras tantas bofetadas de minha mãe e ordens expressas de meu pai para me deixar de cavalgadas no gelo. E dado que meu pai não era de brincadeiras, eu passei a esconder-me para as fazer. Ia lá para uma touça com uma fonte e uma lameira em plano inclinado, sempre coberta de gelo e tão recatada entre urzeiras como o toucador duma gueixa entre biombos. Era aí que eu cavalgava matões a meu bel-prazer e à rédea solta.
Ora uma tarde em que eu me entregava ao meu desporto favorito e proibido, sai-me dentre as urzes o meu cão com um coelho na boca. Isto não teria nada de anormal se, atrás do coelho, não viesse uma ratoeira a rastos. Recolhi o coelho ao bornal, fiz umas festas ao Dezoito, que assim se chamava o cão, atirei com a ratoeira à lura dum carvalho antigo e com o assunto para trás das costas.
Era isto a um domingo e eu aluno da quarta classe. Vim para casa, meti as vacas, ceei mais cedo e fui dormir a S. Vicente, onde, segunda-feira, a professora exigia a nossa presença logo ao romper o dia. À hora do recreio, estava o meu vizinho Joaquim do Fontenova, praça velha, direito comigo. Pelos vistos, a ratoeira era dele. Neguei, claro.
— Ai sim? E onde foste tu pelo coelho que ontem trouxeste para casa?
— Agarrou-o o meu Dezoito.
— Na minha ratoeira?
— Não vi ratoeira nenhuma, já te disse!
— Acuso-te à professora.
— Acusa. Quero lá saber.
Nesta altura da discussão já estávamos rodeados por todos os alunos das quatro classes e uma boa parte dos vizinhos de S. Vicente. E até o senhor abade, que regressava do passal de cabeção, batina, tamancos e sacho às costas, quis saber que galega parira ali? Inteirado, pôs aquela cara de bondade e riso que era a dele e disse:
— Vá. Ide à vossa vida. Deixai-me aqui só com o Fontenova e o Marinheiro que lhes quero um segredo.
A malta dispersou. O pároco voltou-se para o Fontenova e inquiriu:
— Quantos coelhos tens em casa?
— Um.
— Não. Tu, às ratoeiras que armas todas as noites, deves ter mais?
— Bem. Se o senhor abade tem alguma incumbência, podem-se arranjar mais alguns.
— Quantos?
— Uns quatro ou cinco.
— Preciso apenas de dois.
— Onde quer que lhos deixe?
— Entrega-los aqui ao Marinheiro.
— Para quê?!
— Ele te dizer onde está a ratoeira.
— E o senhor abade fica por ele? — atalhei eu a rir-me.
Ele ameaçou-me com um tabefe:
— Anda, que tu és malandro, mas desta já eu te safei.
No domingo seguinte, estando eu no adro entre um ror de rapazes e homens à espera do toque de entrada para a missa, vem de lá o Faia de Travassos, sempre pantomineiro, bate-me duas palmadinhas nas costas e exclama:
— Ora aqui está o homem que matou três coelhos duma cajatada...


Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 122 e ss.)

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