sábado, 17 de maio de 2014

um homem sorri a morte -com meia cara


JOSÉ RODRIGUES MIGUEIS

um homem
sorri a morte

-com meia cara



 Editorial Estampa





IN MEMORIAM

DO

DOUTOR FRANCISCO PULIDO VALENTE,

mestre de médico e de homem,

E DO

DOUTOR Luís NAVARRO SOEIRO,

grande coração ao serviço das almas

J. R. M.






Ao traçar estas páginas de memória duma crise, entre tantas que talvez um dia reúna em maior tomo, punha-se-me este problema: até que ponto pode um escritor falar das suas experiências pessoais, sem incorrer na pecha de subjectivismo e sem ser indiscreto a respeito de si próprio? Será possível, nesta época e num meio como o nosso, avesso por tradição e preconceito à literatura de confissões, que tem enriquecido e ajudado a esclarecer tantas outras culturas, usar da franqueza de um Rousseau, de um Stendhal, de uma Bashkírtseva, para não dizer já de um De Quincey ou Baudelaire? Flaubert deixou-nos documentada a crise inicial de epilepsia, que tanto faz pensar na do Jean-Jacques das Confessions; de James Joyce esforçam-se os biógrafos por descrever-nos a cegueira e a úlcera gástrica; e Uriel da Costa, e Scott Fitzgerald? Indo ao extremo da indiscrição, quanto se não tem especulado sobre a «necrofilia» de Camilo ou a castidade de Júlio Dinis! Já houve quem «explicasse» a angústia de Antero pelo aperto do piloro ou do cárdia, não sei bem, e o seu suicídio — ó céus! — pelo aumento da pressão atmosférica. O sofrimento, como parte tecidual da existência, é um enigma que empolga os homens.
Mas, independentemente da desproporção dos casos, a questão peca pela base, pois não é do autor que aqui se trata, essencialmente, mas sim do que, na sua experiência pessoal, possa ser comum, comunicável, útil até, como exemplo e lição, aos demais homens. Estas não são confissões de egotismo, nem de actos ou pensamentos secretos, nem sondagens do «eu odioso», mas um caso humano narrado em primeira mão pela sua mais próxima testemunha, com a objectividade de um romance, e pretexto para agitar certos problemas tão gerais como a inquietação da doença e da morte, ou a atitude do indivíduo perante o sofrimento físico e o destino pessoal.
Sim, foi sobretudo para os hipocondríacos — os aterrados da doença, os obcecados do fim — que eu escrevi estas páginas de jornal; depois, para os que queiram saber como se reage num leito de hospital, quando a morte ronda; e talvez também para aqueles médicos a quem interesse saber como os vêem os seus doentes.
Procurei pintar um ambiente real: o dos hospitais numa grande metrópole moderna, onde a dor e a brutalidade, a doçura e o humor, e em particular a devoção dos médicos e das enfermeiras põem traços de tragédia e de epopeia, diante das quais o tema pessoal se apaga e some.
Que escritor, dispondo deste material de experiência vivida, recusaria tratá-lo com objectividade, pintando o cenário e os actores dum drama que diariamente se desenrola a nosso lado, mas ignorado ou esquecido, ou pudicamente velado pelos preconceitos? Não se escrevem porventura memórias de guerra, de masmorras e campos de concentração? E não será também saudável mostrar em que lamas o homem se arrasta ou mergulha por vezes, para delas se erguer e libertar, purificado?
O que importa ao escritor, subjectivador do objectivo, intérprete das reacções do indivíduo em face das calamidades que de todos os lados nos ameaçam, é recriar para os leitores o quadro das experiências de que foi o centro, dando-lhes a ilusão, porventura instrutiva, de serem eles os actores do drama.
Se, ao traçar alguns destes episódios, roço aqui além pela ironia, é sempre com profundo respeito e comovida gratidão que me refiro aos autênticos apóstolos da medicina que tenho conhecido. Os erros são de todos nós, humanos, e não seria de esperar que deles estivessem isentos os homens da bata branca. Nem de longe tentei reincidir na sátira de que há milénios eles têm sido alvo. Pode-se dizer dos médicos o mesmo que das mulheres e dos judeus: crivados, eles e elas, de epigramas e ataques, a humanidade não saberia nem poderia viver sem a sua presença.

J.R.M.

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