sexta-feira, 18 de abril de 2014

O PÉ DESCALÇO


Há dias, estando eu a arrumar uns livros na estante, deparei com um datado de 1956 e o seguinte título: «O PÉ DESCALÇO — Uma Vergonha Nacional que Urge Extirpar». Fiz com ele o que as máquinas de contar dinheiro fazem com as notas de cem euros. Premi-o de encontro ao dedo e deixei deslizar as páginas. O suficiente para ficar a saber que, à data do meu nascimento, dois terços dos portugueses andavam descalços. E que, em 1928, a «Liga Portuguesa de Profilaxia Social», com sede no Porto, lançou uma campanha com o título supracitado.
Os argumentos eram de peso. Que «só em 1927 foram socorridas na Cruz Vermelha da Cidade Invicta, 600 pessoas com ferimentos nos pés», grande número das quais veio a morrer de tétano.
Que o vergonhoso hábito de andar descalço estava tão arreigado, que se viam raparigas com boas roupas, cordões de oiro ao pescoço e arrecadas nas orelhas e os pés nus. O mesmo nos rapazes. Bons fatos, gravata, correntes com grilhão no colete e pata ao léu.
Que o grande número de pessoas descalças por essas ruas e praças causava espanto e comentários desagradáveis nos estrangeiros que nos visitavam. Que só em Portugal e na África se viam coisas destas. Guerra ao pé descalço.
Lentamente, como quem rola um penedo encosta arriba, a «Liga» foi levando a cruz ao Calvário. Primeiro o governador civil do Porto, depois o de Lisboa, a seguir o de Coimbra, proibiram, sob pena de multa e cadeia, o pé descalço na rua. Os tribunais começaram a ficar entupidos com tanta gente levada a juízo. E o mais estranho é que, pelos relatos desses julgamentos, ficamos a saber que nas grandes cidades se andava descalço durante todo o ano.
Eu, por acaso, só andava descalço no Verão. Para o Inverno sempre havia uns tamancos amanhados pelo meu pai, a quem a necessidade obrigava às mais variadas artes, entre elas a de soqueiro. E francamente lhes digo que até gostava de andar descalço. Ao arrepio da sensação de grilheta causada pelo tamanco, a pata ao léu transmitia-me na rua, nos caminhos e nos montes, a sensação de leveza e graciosidade dum bailarino no palco. Só não gostava de duas coisas. Esborrachar o dedo grande de encontro às pedras e abrir gretas nas pregas interdigitais. Já viram o que era andar sobre lameiros de feno cortados de fresco? Os caules, rijos e feros como as cerdas da escova de ferro com que o Tomé da Volta, picador de burros afamado, almofaçava o fouveiro, enfiavam-se-me pelas gretas e punham-me a dançar o saricoté num pé. Valia-me então uma vizinha de porta a quem eu suplicava que me fizesse chichi nos pés. Ardia mas aliviava.
Chamava-se ela Marcelina e era dada na cédula de nascimento como nascida no mesmo ano que eu, e filha de pai incógnito e da cabaneira Ana Garcia, mais conhecida por Descalça.
Esta Descalça tinha apenas a casita, um hortejo, meia dúzia de galinhas e uma burra parideira.
As galinhas andavam por aí à vontade. A burra apascentava-a a filha pelos baldios da povoação. Eu, na altura pastor de vacas, repartia com ela a merenda e os brinquedos. Corríamos por aqueles campos, rebolávamo-nos na relva, riamo-nos muito. Não sei como é que os pardais escolhem companheira. Mas deve ser por qualquer coisa muito parecida com aquilo que me atraía para a Lina, a Descalça, antonomásia herdada da mãe, mas que na filha assentava a primor, uma vez que, da minha lembrança, nunca lhe conheci qualquer espécie de calçado. E o que ainda hoje me causa espanto é nunca ter visto nos pés da minha companheira de infância qualquer dedo esborrachado ou greta interdigital. À força de andar sempre descalça, criara na planta dos pés uma verdadeira sola, que lhe permitia correr por cima das pedras, tojos, silvas, ou qualquer outro obstáculo, sem se magoar.
O livro citado afirma que o pé da mulher descalço se esparrama, alarga, masculiniza, se torna nodoso, feio. Não é verdade. Pelo menos a meus olhos, o pé da Lina continuava bonito, harmonioso, elegante, feminino a mais não poder ser.
Com ele a minha amiga se sentiu feliz até aos catorze anos. Por essa altura sobreveio-lhe uma doença muito comum nas mulheres: a inveja. Via as filhas dos lavradores de sapatos na missa e nas festas e meteu-se-lhe na cabeça que também tinha direito a uns. Pediu-os à mãe:
— Oh, filha! E dinheiro?
— Deixe-me ir às segadas.
— Vou falar com o Marcelino.
O Marcelino era tio materno da Lina e capataz de seitoiras. Comprometeu-se a levar a sobrinha à Terra Quente. Partiram em fins de Maio e regressaram em meados de Julho. Graças à protecção do tio, a jovem Descalça foi e veio sem ter perdido a inocência e a alegria.
Juntara à volta de 500$00 de jeiras. Comprou sapatos, meias de vidro, vestido, arrecadas e deu o resto à mãe. Entretanto chegou a Senhora da Livração e Lina resolveu ir à festa e estrear os sapatos. Fui com ela. À pata e descalços, ela com os sapatos numa saca, à cabeça, e eu com os meus enfiados num pau, ao ombro. Entre Peireses e as Boticas medeiam uns bons quinze quilómetros de caminhos poeirentos. Chegámos num estado lastimável.
— Calçamo-nos Lina? — perguntei eu à entrada da vila.
— Mas eu queria lavar os pés para não sujar os sapatos. Não sabes onde haja por aí um tanque ou um rego?
Levei-a lá para uma represa onde, durante a festa, costumam colocar um São Cristóvão gigante com uma tranca nas unhas e o Menino Jesus ao ombro.
Desencardimos os pés, enfiámos os sapatos, corremos para o arraial. De repente a Lina levou as mãos ao peito e disse:
— Ai Jesus!
— Que foi?
— Falta-me o ar...
— Não me digas que respiras pelos pés?!
— Ai Jesus! — voltou ela, sentando-se no passeio.
Estava coberta de suores frios, lívida, mesmo aflita. Afligi-me também:
— Queres que te vá buscar um copo de água?
— Liberta-me dos sapatos se não abafo.
Retirei-lhe rapidamente os sapatos e as meias. Ela respirou fundo:
— Ai que alívio! Deus te pague.
Ficou um momento a olhar para mim com aqueles seus olhinhos garços, tão luminosos, expressivos e promissores como as mais belas manhãs de Abril. Depois começou a chorar.
— De que choras?
— Lá se foi a festa...
— Porquê?
— Já viste a figura? Tu de sapatos e eu descalça?
— Isso tem bom remédio.
Descalcei-me também e estendi-lhe a mão:
— Anda.
E começámos de novo a correr de mãos dadas, alegres, felizes e inocentes como dois pardais acabados de sair do ninho.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas de Barroso (p. 118 e ss.)

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