Há
dias, estando eu a arrumar uns livros na estante, deparei com um datado de 1956
e o seguinte título: «O PÉ DESCALÇO — Uma Vergonha Nacional que Urge Extirpar».
Fiz com ele o que as máquinas de contar dinheiro fazem com as notas de cem euros.
Premi-o de encontro ao dedo e deixei deslizar as páginas. O suficiente para
ficar a saber que, à data do meu nascimento, dois terços dos portugueses
andavam descalços. E que, em 1928, a «Liga Portuguesa de Profilaxia Social»,
com sede no Porto, lançou uma campanha com o título supracitado.
Os
argumentos eram de peso. Que «só em 1927 foram socorridas na Cruz Vermelha da
Cidade Invicta, 600 pessoas com ferimentos nos pés», grande número das quais
veio a morrer de tétano.
Que
o vergonhoso hábito de andar descalço estava tão arreigado, que se viam
raparigas com boas roupas, cordões de oiro ao pescoço e arrecadas nas orelhas e
os pés nus. O mesmo nos rapazes. Bons fatos, gravata, correntes com grilhão no
colete e pata ao léu.
Que
o grande número de pessoas descalças por essas ruas e praças causava espanto e
comentários desagradáveis nos estrangeiros que nos visitavam. Que só em
Portugal e na África se viam coisas destas. Guerra ao pé descalço.
Lentamente,
como quem rola um penedo encosta arriba, a «Liga» foi levando a cruz ao
Calvário. Primeiro o governador civil do Porto, depois o de Lisboa, a seguir o
de Coimbra, proibiram, sob pena de multa e cadeia, o pé descalço na rua. Os
tribunais começaram a ficar entupidos com tanta gente levada a juízo. E o mais estranho
é que, pelos relatos desses julgamentos, ficamos a saber que nas grandes
cidades se andava descalço durante todo o ano.
Eu,
por acaso, só andava descalço no Verão. Para o Inverno sempre havia uns
tamancos amanhados pelo meu pai, a quem a necessidade obrigava às mais variadas
artes, entre elas a de soqueiro. E francamente lhes digo que até gostava de
andar descalço. Ao arrepio da sensação de grilheta causada pelo tamanco, a pata
ao léu transmitia-me na rua, nos caminhos e nos montes, a sensação de leveza e
graciosidade dum bailarino no palco. Só não gostava de duas coisas. Esborrachar
o dedo grande de encontro às pedras e abrir gretas nas pregas interdigitais. Já
viram o que era andar sobre lameiros de feno cortados de fresco? Os caules,
rijos e feros como as cerdas da escova de ferro com que o Tomé da Volta,
picador de burros afamado, almofaçava o fouveiro, enfiavam-se-me pelas gretas e
punham-me a dançar o saricoté num só pé. Valia-me então uma
vizinha de porta a quem eu suplicava que me fizesse chichi nos pés. Ardia mas
aliviava.
Chamava-se
ela Marcelina e era dada na cédula de nascimento como nascida no mesmo ano que
eu, e filha de pai incógnito e da cabaneira Ana
Garcia, mais conhecida por Descalça.
Esta
Descalça tinha apenas a casita, um hortejo, meia dúzia de galinhas e uma
burra parideira.
As
galinhas andavam por aí à vontade. A burra apascentava-a a filha pelos baldios
da povoação. Eu, na altura pastor de vacas, repartia com ela a merenda e os
brinquedos. Corríamos por aqueles campos, rebolávamo-nos na relva, riamo-nos
muito. Não sei como é que os pardais escolhem companheira. Mas deve ser por qualquer
coisa muito parecida com aquilo que me atraía para a Lina, a Descalça, antonomásia
herdada da mãe, mas que na filha assentava a primor, uma vez que, da minha
lembrança, nunca lhe conheci qualquer espécie de calçado. E o que ainda hoje me
causa espanto é nunca ter visto nos pés da minha companheira de infância
qualquer dedo esborrachado ou greta interdigital. À força de andar sempre
descalça, criara na planta dos pés uma verdadeira sola, que lhe permitia correr
por cima das pedras, tojos, silvas, ou qualquer outro obstáculo, sem se magoar.
O
livro citado afirma que o pé da mulher descalço se esparrama, alarga, masculiniza,
se torna nodoso, feio. Não é verdade. Pelo menos a meus olhos, o pé da Lina
continuava bonito, harmonioso, elegante, feminino a mais não poder ser.
Com
ele a minha amiga se sentiu feliz até aos catorze anos. Por essa altura sobreveio-lhe
uma doença muito comum nas mulheres: a inveja. Via as filhas dos lavradores de
sapatos na missa e nas festas e meteu-se-lhe na cabeça que também tinha direito
a uns. Pediu-os à mãe:
—
Oh, filha! E dinheiro?
—
Deixe-me ir às segadas.
—
Vou falar com o Marcelino.
O
Marcelino era tio materno da Lina e capataz de seitoiras. Comprometeu-se a
levar a sobrinha à Terra Quente. Partiram em fins de Maio e regressaram em
meados de Julho. Graças à protecção do tio, a jovem Descalça foi e veio
sem ter perdido a inocência e a alegria.
Juntara
à volta de 500$00 de jeiras. Comprou sapatos, meias de vidro, vestido,
arrecadas e deu o resto à mãe. Entretanto chegou a Senhora da Livração e Lina
resolveu ir à festa e estrear os sapatos. Fui com ela. À pata
e descalços, ela com os sapatos numa saca, à cabeça, e eu com os meus enfiados
num pau, ao ombro. Entre Peireses e as Boticas medeiam uns bons quinze quilómetros
de caminhos poeirentos. Chegámos num estado lastimável.
—
Calçamo-nos Lina? — perguntei eu à entrada da vila.
—
Mas eu queria lavar os pés para não sujar os sapatos. Não sabes onde haja por
aí um tanque ou um rego?
Levei-a
lá para uma represa onde, durante a festa, costumam colocar um São Cristóvão
gigante com uma tranca nas unhas e o Menino Jesus ao ombro.
Desencardimos
os pés, enfiámos os sapatos, corremos para o arraial. De repente a Lina levou
as mãos ao peito e disse:
—
Ai Jesus!
—
Que foi?
—
Falta-me o ar...
—
Não me digas que respiras pelos pés?!
— Ai Jesus! — voltou ela, sentando-se no passeio.
Estava
coberta de suores frios, lívida, mesmo aflita. Afligi-me também:
—
Queres que te vá buscar um copo de água?
—
Liberta-me dos sapatos se não abafo.
Retirei-lhe
rapidamente os sapatos e as meias. Ela respirou fundo:
—
Ai que alívio! Deus te pague.
Ficou
um momento a olhar para mim com aqueles seus olhinhos garços, tão luminosos,
expressivos e promissores como as mais belas manhãs de Abril. Depois começou a
chorar.
—
De que choras?
—
Lá se foi a festa...
—
Porquê?
—
Já viste a figura? Tu de sapatos e eu descalça?
—
Isso tem bom remédio.
Descalcei-me
também e estendi-lhe a mão:
—
Anda.
E
começámos de novo a correr de mãos dadas, alegres, felizes e inocentes como
dois pardais acabados de sair do ninho.
Bento
da Cruz, PROLEGÓMENOS II — Crónicas
de Barroso (p. 118 e ss.)
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