Durante
grande parte da nossa vida, a morte é uma coisa alheia e distante que só vaga e
incertamente nos diz respeito. Até que, um dia, damos subitamente com ela à
porta da nossa própria casa e descobrimos então que sempre ali esteve.
Quando somos
jovens e morrem os avós, ou os pais, ou os amigos dos pais, não é ainda a
morte. Mesmo se um amigo morre, morre por acidente, morre por acaso, morre
antes do tempo de morrer. A morte apenas começa a ter um rosto, o nosso rosto, quando,
à volta, os amigos morrem tão-só de morrer e os motivos por que morrem são uma
explicação, não uma razão.
A mãe de
minha mulher costumava dizer: «Os meus mortos...», e eu não compreendia. Hoje,
porém, também eu tenho mortos. Quando o Chico morreu escrevi um poema a que pus
o título de «O mundo sem o Chico», porque, descobri, a sua morte tinha levado o
mundo consigo e o que me restava era um outro mundo, desconhecido e
desabrigado, onde penosamente aprendia a viver outra vida, a minha vida. Depois
disso, muitos mais mundos se foram desfazendo diante de mim e, de cada vez,
fiquei mais só do lado de cá de qualquer coisa.
Antes de
morrer com 16 facadas, numa longínqua auto-estrada da Turquia, Sérgio
escreveu-me uma última vez. Uma carta trivial, dizendo coisas triviais sobre
coisas triviais, como se não tivesse ainda morrido. A notícia da sua morte
chegara, no entanto, primeiro do que a carta. Que podia eu fazer com ela, com a
carta, com tanto peso, com tanta desmesura? Também Fernando me escreveu antes
de se enforcar. Mandou-me um cheque. Emprestara-lhe em tempos dinheiro e ele
esquecera-se de que já mo havia pago e pagava-mo de novo. Que podia eu fazer
com um dinheiro tão insustentável como aquele?
E com os seus
nomes, que poderei fazer agora com os seus nomes? E que outro nome terão agora
o Fernando, o Sérgio, o Chico, o Assis, o Arnaldo, a Marcela, o Luís, o Manuel
Hermínio e os outros? Abro a minha agenda telefónica e estão ainda todos paradamente
lá, os nomes que um dia tiveram. Que poderei fazer com eles? Riscá-los?
Apagá-los? São agora aparentemente inúteis, esses nomes e esses números. E,
contudo, ali permanecem, alguns há vários anos. Porque se trata, cada um, de
uma questão comigo mesmo, uma questão insolúvel, ainda não encerrada. Todos os
anos copio outra vez os seus nomes. Porque ainda não me conformei.
Há de facto
na morte algo de injusto e de inaceitável, e as nossas lágrimas são, acho eu,
tanto de revolta quanto de dor. Assisti outro dia ao enterro do Manuel
Hermínio. Meteram-no num buraco fundo e imenso e, enquanto o Sol declinava
lentamente atrás dos pinheiros, três homens despejaram sobre ele terra húmida e
pedras. Como poderia conformar-me?
Os meus
mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios,
incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a
minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora
de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam, estou, pois,
junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente eu lhes pertenço.
Visão, 14/06/2001
Manuel António Pina
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