Opinião
Muitas vezes pergunto se a maioria daquilo que hoje passa por ser
um radicalismo da esquerda (e que a direita saliva ao ouvir) não é pouco
mais do que moderadamente social-democrata ou democrata-cristão.
Uma coisa a esquerda deve compreender com toda a clareza: a direita
venceu a batalha ideológica nos últimos anos. Mais: essa vitória tem
profundas repercussões nos anos futuros e molda a opinião pública. É uma
vitória muito perigosa e pegajosa, porque se coloca no terreno daquilo
que os sociólogos chamam “background assumptions”, molda o
nosso pensamento sem trazer assinatura, parece a “realidade” quando é
uma construção ideológica. No entanto, convém não confundir duas coisas
distintas, a ideologia e política. E a direita perdeu a batalha
política, o que ajuda a ocultar a sua vitória ideológica. O problema é
que a solidez da vitória ideológica é maior do que a solidez da vitória
política.
Para começar, obrigou-me a contragosto a ter que retomar
uma linguagem esquerda-direita, que de há muito penso estar
ultrapassada e ter mais equívocos do que vantagens. Sim, já sei, conheço
a frase de Alain sobre que quem pensa que não é de esquerda nem de
direita é de direita, mas hoje a frase oculta mais do que revela.
Considero
este retorno a um quadro de dualidades, que só pode ser usado numa
perspectiva histórica ou sentimental, um dos estragos mais recentes
sobre possibilidade de se sair de uma política do passado. Pode servir
para dar identidade, mas explica cada vez menos o que se passa. Um
exemplo, é a crítica ao consumismo oriunda da esquerda que preparou o
terreno e encaixou perfeitamente na crítica da direita ao “viver acima
das suas posses”, em ambos os casos centrando-se na culpabilização dos
consumos típicos da classe média. Mais do que de esquerda e direita,
estas posições são socialmente reaccionárias.
Num país em que a
construção de uma classe média é recente e traz consigo uma nova
liberdade face à pobreza e à memória recente da pobreza, isso significa
pôr em causa muitos aspectos do mecanismo de elevador social e abre
caminho, por exemplo, à negação de que a educação possa ser um elemento
fundamental dessa ascensão social. Alguns autores usam a crítica à
ideologia republicana da “escola” para pôr em causa aquilo a que chamam o
“mito” da educação.
A verdade é que em termos ideológicos, e
também em termos políticos, passámos do cinema para a lanterna mágica.
Andámos para trás, e isso acontece mais vezes do que aquilo que se
deseja. Com a experiência de um Tea Party à portuguesa, ficamos
“liberais” à americana. Por isso, lá tive, a contragosto e moendo-me
todo, que voltar a falar a linguagem paupérrima da dualidade
esquerda-direita.
Este retorno ao dualismo esquerda-direita foi
uma vitória do PP de Monteiro-Portas e do Bloco de Esquerda. A sua
vítima foi o centro político e o antigo PSD reformista. Ver o PSD de
Passos e seus amigos a aceitar com toda a naturalidade serem
classificados de direita, foi uma ruptura clara e explícita com o PSD de
Sá Carneiro. Do outro lado, o PS evitou cuidadosamente auto nomear-se
de esquerda, como se a palavra tivesse sarna, já para não dizer que os
diminuía face aos seus novos amigos da banca e dos negócios nos últimos
anos. A “terceira via” foi o caminho. Renderam-se todos aos “mercados”
como Deus ex machina da política e isso desarmou-os ideologicamente.
Por
isso, todo o espectro político está puxado à direita e, por reflexo,
deixou apenas franjas na esquerda. As verdadeiras fracturas são hoje de
outro tipo e não ganham nada em serem pensadas na dicotomia
esquerda-direita. O caso mais flagrante é a questão da democracia e
soberania, a perda de poderes do voto dos portugueses, cujo parlamento
não tem capacidade orçamental, e a entrega à burocracia transnacional de
Bruxelas dos principais instrumentos de governação de um país que era
suposto ser independente, ou seja, é mais importante a posição face à
“Europa”. E aqui a divisão esquerda-direita não é fácil de fazer.
Mais
relevante para perceber o que se passou é ver como o programa social
virou parte do centro e da direita para o radicalismo e puxou parte da
esquerda para ocupar esse centro. Será que a esquerda não se interroga
se muitas das medidas que hoje enuncia como sendo o supra-sumo da
esquerda, como seja a reposição de salários e pensões, não são
propriamente de esquerda, e só se tornaram de esquerda pela
radicalização da direita? Muitas vezes pergunto se a maioria daquilo que
hoje passa por ser um radicalismo da esquerda (e que a direita saliva
ao ouvir) não é pouco mais do que moderadamente social-democrata ou
democrata-cristão.
Ainda recentemente ouvi com atenção uma
intervenção de Marisa Matias fazendo para mim uma classificação interior
daquilo que era ideologicamente de esquerda e, com excepção da questão
das privatizações versus nacionalizações, tudo era da mais pacífica
doutrina social da igreja, podia ser dito pela Caritas, por um democrata
cristão ou um social-democrata se ainda os houvesse. Até o Papa
Francisco, nestes termos, estaria muito mais à esquerda.
O mal é
da Marisa Matias? Não, é de nos termos deixado enredar numa confusão
entre o interlocutor e o conteúdo da interlocução. Por isso, exames,
pensões, reformas, feriados, tudo passou a ser não apenas de esquerda,
mas do radicalismo de esquerda, apenas porque só partidos que se
auto-classificam de esquerda o fazem. Aceitar que alguém diga isto sem
um atestado de ignorância ou uma gargalhada mostra a nossa pauperização
política e ideológica.
É por isso que um deputado do ex-PaF se
dizia muito surpreendido por o Bloco de Esquerda defender o feriado do
Corpo de Deus, sem perceber que o problema é ele ter colocado uma
vulgata do “economês” acima de um dia em que se reza ao divino e em que a
Igreja quer que as mundanais preocupações dêem lugar à fé. O que se
passou é que a radicalização da direita deixou um terreno vazio ao
centro que faz com que uma esquerda moderadíssima pareça o bolchevique
com uma faca entre os dentes.
A aceitação de que a classificação
política dos outros seja feita pela direita radical, coisa que a ala
direita do PS interiorizou completamente, é um dos aspectos dessa
vitória ideológica. A direita mais radical interiorizou em muitos
portugueses um modo de pensar, uma maneira de defrontar os problemas,
uma forma de questionar, uma interpretação da vida social, da economia,
do estado, que é de facção, mas que muitos aceitam sem questionar.
O
esplendor dessa vitória ideológica surge quando um qualquer jornalista
puxa do coldre a pergunta “quanto custa?” e “quem paga?”, sempre que se
fala de salários, pensões, reformas, diminuição dos horários de
trabalhos, qualquer coisa que diga respeito ao mundo do trabalho e não
faz o mesmo em todas as outras circunstâncias. Já viram um jornalista
confrontar um gestor ou um empresário com a pergunta de “quem paga?” e
“quanto custam’” os erros de gestão, a falta de competitividade das
empresas devida à má qualidade dos seus empresários, a fuga ao fisco
“legal”, etc?
Já viram um jornalista, com a mesma imediaticidade
pavloviana do “quem paga?”, perguntar a um banqueiro se ele acha justo
que os erros de gestão da banca tenham que ser pagos pelos
contribuintes? Não, porque o jornalista já deu na sua cabeça a resposta
ideológica, “é preciso salvar o sistema financeiro”.
Por que razão
não há sanção moral pública com as muitas pessoas com riqueza acima de
um milhão de euros que estão a fazer à pressa doações para escapar à
eventualidade de o governo PS criar um imposto sucessório, ao mesmo
tempo que não perdem oportunidade de penalizarem moralmente os mandriões
dos trabalhadores dos transportes?
É isto a fractura entre a
esquerda e direita? Não, é uma fractura que um homem ou mulher honesto,
podem colocar noutras palavras como seja a decência. Se admitirmos que
há “bom senso” no pensamento, então também podemos admitir que o “bom
senso” da ética é a decência.
Recoloquemos aí muito daquilo que é
hoje uma falsa fractura ideológica, não porque isso seja um limbo
ideológico, mas porque essa recolocação ajuda a limpar o terreno. Depois
podemos partir para as fracturas ideológicas do passado, que conhecemos
como de esquerda e direita e analisá-las e teremos algumas surpresas
pela inversão de alguns papéis. E depois podemos voltar ao limbo inicial
para ver se ele subsiste para além de um sistema de valores e se o
podemos arrumar de outro modo, limpando-o da superioridade moral que
acarreta o uso de valores em política. Para combater a ideologia da
direita radical precisamos de algum retorno à moralidade, como os
espanhóis compreenderam com as suas “marchas pela dignidade”, e depois
então vamos à política pura e dura para nos desentendermos, a boa coisa
do debate em democracia e liberdade.
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