Acusavam-no de escrever sobre amigos, e ele dizia que se tornava amigo
daqueles, pessoas ou livros, sobre quem escrevia. Ler e escrever sobre o que se
lê é uma árdua tarefa quando se lê com amor, quando a leitura é encontro
connosco mesmos e com aquilo (mundo e existência) que, em nós, é
fundamentalmente impartilhável. E é também uma tarefa generosa e um exercício
arriscado; falamos sempre de mais quando falamos de outros, de pessoas ou de
livros. Porque, nesse momento, estamos sós e, por muito que chamemos por
companhia, memórias, nomes, outros livros (e as crónicas literárias de Eduardo Prado Coelho faziam-no insistentemente), a
companhia nunca vem.
Acho que é imprudente, e se calhar injusto, falar em crítica literária a
propósito do que Eduardo Prado Coelho escrevia sobre livros nos jornais
(crítica haverá talvez no seu ensaísmo). Criticar é pôr em crise e se algo ele
punha em crise nessas crónicas era principalmente ele próprio. Eram textos,
embora transmissíveis, pessoais, às vezes dir-se-ia que privados. Mas, de um
modo ou doutro, não falamos sempre de nós, que é o que temos mais à mão?
Muitos acusavam-no justamente disso, clamando por «objectividade» como se
ele estivesse constituído em alguma espécie de «serviço público» e lhe
coubesse, não amar ou desamar, mas separar o «bom» do «mau» e a «culpa» da
«inocência». Mas nem a crítica literária (chamemos-lhe assim) é um processo
judiciário nem o crítico, pelo menos na prática de Eduardo Prado Coelho, um
juiz, mas uma parte interessada. Pedia-se-lhe o que ele não podia dar, justiça.
A vida, no caso a vida literária, é injusta, e merecemos sempre mais do que ela
está disposta a dar-nos. O que alguns exigiam a Eduardo Prado Coelho era que
ele reparasse os males da nossa pobre existência literária (da nossa e da de
cada um). Ora ninguém tem poder para tanto.
Eduardo Prado Coelho escreveu excessivamente sobre alguns dos meus livros.
A minha amizade com ele começou com a sua singular e injustificada amizade por
esses livros (a certa altura até já escrevia sobre os meus gatos), e não ao
contrário; e, tivesse sido ao contrário, a coisa iria dar ao mesmo, pois, como
os do Senhor, são misteriosos os caminhos da amizade. Um dia, no bar da
Biblioteca Nacional, disse-lhe que ele não era juiz fiável. E não era. Porque
não era (felizmente não era!) um juiz, mas um leitor de livros, que amava, como
todos amamos, alguns deles (vá lá perceber-se porquê, e eu frequentemente não
percebia) e a quem outros eram indiferentes. E que escrevia sobre isso sem se
dar ao cuidado de adiar o coração (víscera incómoda). Morreu do coração, de que
outra coisa poderia ter sido?
Sei o que é escrever todos os dias ou todas as semanas (contar para
vivirla e não vivir para contarla). Por isso queria que isto fosse, agora
que ele está morto, uma espécie de louvor e simplificação de Eduardo Prado
Coelho e da sua relação com a literatura (e com o cinema, e com a música, e com
cada dia que passa, isto é, com a vida). E não acabei, também eu, a falar de
mim?
Manuel António Pina - Visão, 30/08/2007
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