sexta-feira, 16 de agosto de 2013

ARROZ DE MELRO


Terminou o mês de Julho, o sétimo do ano, assim denominado em honra de Júlio César, diz o dicionário.
Na aldeia da minha infância, onde raros sabiam ler e ninguém tinha dicionário, chamavam-lhe o mês das Segadas. Era durante ele que se ceifavam os fenos e as messes e eu perseguia os melros.
Toda a minha infância está cheia de melros. Eu seguia-lhes, pelas variações do assobio e do riso, a vida íntima. O acasalamento, a construção do ninho, a postura. Depois, era conforme. Se soubesse de vários ninhos com ovos frescos e o desejo me pedisse uma bica d'ovos, saqueava tudo no mesmo dia e punha a caçoila ao lume. Se o desejo se inclinasse para uma espetada ou arroz, aguardava que os pássaros crescessem e emplumassem.
Convencido de que os melros não tinham outra serventia neste mundo, fiz isto durante anos.
Mas quis o destino que eu fosse à Ribeira e pernoitasse em casa dum amigo de meu pai. De manhã acordei com o assobio dum melro. E o solista cantava ali tão perto, que eu saí fora na intenção de lhe ser útil. Qual não foi o meu espanto, quando deparei com uma gaiola na varanda.
Estava eu a olhar para ela, vem de lá o filho da casa, meio estremunhado, e pergunta:
– Gostas?
– Se gosto! E que bem ele canta!
– Isso é um artista.
– Quem me dera um! Mas não tenho dinheiro...
– Dinheiro para quê?
– Comprar a gaiola.
– Nem é preciso. Essa fi-la eu.
Era de bambu, a gaiola.
– Mas na minha terra não há bambus.
– Isso qualquer arbusto serve. Vimes, por exemplo. Nunca viste um caneiro de apanhar trutas?
– Até já fiz alguns.
– Ora aí tens.
– E o melro?
– Apanha-lo.
– No ninho?
– Não. Tirados do ninho são muito franzinos e difíceis de criar. O mais indicado é apanhá-los uma semana após o abandono do ninho. Naquele período em que os pais andam a ensinar-lhes as regras do bom viver.
– Já sei. Conhece-se pela maneira como eles choram pelo cibato e os pais lhes respondem na linguagem lá deles. O que não estou a ver é como é que eles se apanham?
– À mão.
– Como?
– Os caçadores fazem às perdizes. Nunca reparaste? A primeira vez que as levantam, elas saem com tal velocidade, que eles mal têm tempo de lhes atirar. À segunda, já saem com menos força. Aí pelo quarto ou quinto levante, mal conseguem voar.
Com os melros meninos é a mesma coisa. No primeiro voo, alcançam quinhentos metros. Ao segundo, metade. Ao quarto ou quinto, já não levantam voo. Bem entendido. Desde que os não deixem descansar. Para isso é preciso dar à perna. E, para dar à perna, nada melhor do que lameiros de feno segados.
Este diálogo teve lugar após as vindimas.
Passei aquele Inverno a fazer a gaiola e a Primavera atento aos ninhos.
Veio o São João, segaram-se os fenos. E no primeiro domingo de Julho, com todos os vizinhos para a missa, agarrei numa cesta da costura e saí à caça dos melros.
Com tão boa perna e fortuna que apanhei quatro.
Vinha eu com eles, encontro o Mestre Saias.
– Que levas aí? – pergunta ele.
– Melros.
– Mostra.
Mostrei.
– E bem bonitos! – torna ele – Que vais fazer com eles?
– Metê-los na gaiola.
– Mete-os antes no pote, não sejas burro! Uma ninhada de quatro melros fazem melhor arroz do que um coelho...

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 96 e ss.)

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